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Clastres contra Rousseau: a filosofia à luz da etnologia
Leitor atento de Rousseau, embora raramente o citasse em seus textos, Clastres emprega o mesmo vocabulário que ganhou fama sob a pluma do cidadão de Genebra, tomando por vezes distância de suas reflexões: 1) alusão à vontade geral; 2) a encenação do gesto fundador da sociedade civil de cercar um terreno e o discurso possessivo que inaugura a propriedade privada e a acompanha (“isto é meu”); 3) e, por fim e mais importante, a crítica direcionada às duas frentes que compõem a narrativa de Rousseau sobre a origem do Estado: de um lado, a associação entre desejo de prestígio e vontade de poder; de outro, o fundamento econômico do poder político. Se é certo afirmar que a Arqueologia da violência é contra Hobbes ou uma inversão do argumento de Hobbes – pois aí Clastres politiza a guerra –, por sua vez, a Sociedade contra o Estado é em certa medida contra Rousseau ou, ainda, uma inversão do argumento de Rousseau, visto que se coloca contra a narrativa hipotética da história ocidental: não mais da economia e do prestígio para a política, mas da política para a economia, pois aí Clastres politiza a economia
Questões de cronologia Rousseauísta: o caso do Ensaio sobre a origem das línguas
The twentieth century saw an effervescent debate about Rousseau’s Essay on the origin of languages, especially with regard to its genesis, the period in which it was written, and its possible relations with the Discourse on the origin of inequality. The present article reviews the critical literature on the subject and proposes a chronology consonant with this literature. We focus on the themes that perhaps would have guided Rousseau, from the writing of the initial version of the text to its definitive version. Originally part of the musical polemics between Rousseau and Rameau, the Essay was gradually enriched, eventually covering in a unified way the author’s reflections on societies, languages, and musical systems.
Recebido: 13/10/2018Aceito: 29/06/2019O século XX viu ganhar forma um efervescente debate sobre o Ensaio sobre a origem das línguas de Rousseau, sobretudo no que se refere à sua gênese, ao período em que foi escrito e às suas possíveis relações com o Discurso sobre a origem da desigualdade. O presente artigo, ao repassar a literatura crítica sobre o tema, propõe uma cronologia consonante com a produção especializada, colocando em foco os temas que, porventura, teriam guiado Rousseau desde a redação da versão originária e inicial do texto até a versão definitiva: de um texto originalmente inscrito nas polêmicas musicais entre Rousseau e Rameau, o Ensaio foi paulatinamente enriquecido, abarcando de maneira unificada as reflexões do autor sobre as sociedades, as línguas, as linguagens e os sistemas musicais.
Recebido: 13/10/2018Aceito: 29/06/201
A perfectibilidade segundo Rousseau
The man in the pure state of nature begins his existence “with purely animal functions”. In the first part of his Discourse on Inequality, as a matter of fact, Rousseau's effort consists in almost “animalizing” the human being, making him incapable of performing certain types of operations that the social or socialized man (endowed with an already developed mental apparatus) can do. However, although animalized, man maintains his own dignity and unique nature. The author never reduces the human behaviour to the animal. The aim of this article is to investigate the character of such a unique nature and to show that, against some interpreters, perfectibility (a sign of human distinction) already acts in the pure state of nature. In this sense, we cannot consider it as mere virtuality or as a potential faculty.O homem do puro estado de natureza começa sua existência “por funções puramente animais”. De fato, o esforço de Rousseau na primeira parte do Discurso sobre a desigualdade consiste em quase “animalizar” o ser humano, tornando-o incapaz de realizar certos tipos de operações que o homem social ou socializado (dotado de um aparelho mental já desenvolvido) pode efetuar. No entanto, apesar de animalizado, o homem conserva sua dignidade própria e sua natureza exclusiva. O autor jamais reduz o comportamento humano ao animal. O objetivo do presente artigo é investigar o caráter desta natureza exclusiva e mostrar que, ao contrário do que sustentam alguns intérpretes, a perfectibilidade (signo de distinção humano) já atua no puro estado de natureza. Nesse sentido, não podemos encará-la como uma simples virtualidade nem como uma faculdade em potência
The serpent’s egg or prelude of a ruin: drafts about the sight in the work of Jean-Jacques Rousseau
O presente trabalho analisa, no segundo Discurso de Jean-Jacques Rousseau, o fato de que a estima pública e o olhar do outro são elementos que marcam o início do processo de degradação e de alienação dos homens naquilo que constitui a primeira experiência de sociabilidade pela qual passam, uma vez que, no estado natural, o homem permanecia limitado a seu ser, de modo a manter o equilíbrio entre seus desejos e a satisfação deles, desfrutando de um estado de verdadeira felicidade, ao passo que na sociabilidade ele sai de si mesmo para viver na dependência do olhar do outro, submetido ao império do julgamento públicoThis work analyses in Rousseau’s second Discourse the fact that the public opinion and the others’ sight are elements that set the beginning of man’s degradation and alienation processes in what constitutes the first experience of sociability they go through; in the state of nature, man remained limited to himself, maintaining the balance between his desires and their satisfaction, enjoying a state of true happiness, whilst in social activities he gets out of himself to be dependent on the sight of the other, submitted to the empire of public judgmen
The The View From Afar: The Rousseau’s Ethnological Program
Rousseau’s exhortation to take a distance vision, to observe the differences between men in order to know the specificity and the property of each man — which was expressed two centuries before Lévi-Strauss — sets what it might name rousseauist anthropology. The knowledge of man is not obtained by looking to the side and taking any type immediately available as a reference. On the contrary, it is necessary of travels ruled, an education of the look and the organization of data collected by observation.A exortação de Rousseau, feita dois séculos antes de Lévi-Strauss, de levar a vista ao longe, observar as diferenças entre os homens para conhecer o homem em sua especificidade e propriedade dá o tom do que se poderia chamar de antropologia rousseauísta. O conhecimento sobre o homem não é obtido ao olhar para o lado e tomar como referência um tipo qualquer imediatamente disponível. Ao contrário, é preciso de viagens bem regradas, de uma educação do olhar e da organização dos dados colhidos pela observação
A fala e a escrita na concepção de linguagem de Rousseau
The history of language acquires throughout the Essay on the origin of languages the progress of an accelerated fall in corruption. There is a primitive language that degenerates and changes itself: a process of formation and a deformation. As Rousseau in his reflections identifies - both in origin and in structure - music and language, the loss of expressive power that occurs in languages also affects music and these two corruptions go together, so that both move away from the music language or the sung word from the beginning. The corruption of music and languages corresponds to the erasing of its expressive power and refers to an autonomization of artificial harmony, to the increase of the consonants, of the articulations, of the rationality, to the practice of writing, as well as to the historical, political, economic and social development. All these processes must be taken into account in an analysis of idiom and language. However, it is possible to isolate each one methodologically. Hereupon, the proposal of this article is to investigate the role of writing in the process of corruption and degeneration of languages
Da natureza à cultura: : o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau
Abstract: The dichotomy of the physical/moral world is quite characteristic in the French eighteenth century. It refers to the natural biological dimensions and moral dimensions of man. Many authors of the Enlightenment wished to retrace the conjectural history or the successive metamorphoses that led to the passage of the physical man to the moral man. This theme is also present in the work of Rousseau, being perceived and translated by Lévi-Strauss as the passage from nature to culture. The hypothesis we develop in this article is that the prohibition of incest – present in Rousseau’s work – has a function and a signification very close to the reflections of Lévi-Strauss present in the Elementary Structures of Kinship. Like in Lévi-Strauss, this prohibition marks for Rousseau the beginning of the process of cultural formation, the founding instant of culture. It expresses in a privileged way the point by which cultural processes are distinguished from the natural sphere, the moment in which man stops following his mere instinct and begins to respect socially constructed moral principles.A dicotomia mundo físico/mundo moral é bastante característica do século XVIII francês. Refere-se às dimensões biológicas naturais e às dimensões morais do homem. Muitos autores do Iluminismo desejaram retraçar a história conjectural ou as metamorfoses sucessivas que levaram à passagem do homem físico para o homem moral. Esta temática se faz também presente na obra de Rousseau, sendo percebida e traduzida por Lévi-Strauss como a passagem da natureza à cultura. A hipótese que desenvolvemos neste artigo é que a inscrição da interdição do incesto – presente na obra de Rousseau – ocupa uma função e uma significação muito próximas das reflexões de Lévi-Strauss presentes nas Estruturas elementares do parentesco. Como em Lévi-Strauss, esta proibição marca para Rousseau o início do processo de formação cultural, o instante fundador da cultura. Ela explicita de maneira privilegiada o ponto por meio do qual os processos culturais se distinguem da esfera natural, o momento em que o homem deixa de seguir o mero instinto e passa a respeitar princípios morais construídos socialmente
James Scott e a origem agrária do estado:: um rousseauismo inconfesso
Rousseau’s narrative about the origin of the State was recovered in the last centuries by several traditions, being noticed in the heart of the Scottish Enlightenment and in the works of Engels. James Scott, in his recent book Against the Grain of 2017, echoes some of Rousseau’s theses. Among many points of convergence, three stand out and will be analyzed in the course of this article: i) on the one hand, the variety of ways of being and relating to the nature of stateless peoples, the golden age of the barbarians; on the other, the stratification of peoples under the State, the impoverishment of cereal farmers; ii) the rare and very special ecological conditions favorable to the emergence of the State apparatus, as opposed to the difficulties of forming a State in regions of natural abundance, which imposes the necessity to establish the hypothesis of climate changes that alters the conditions of existence; iii) and, finally, the importance of grains for the civilizing process, that is, the affinity between the agrarian economy of cereals and the State.A narrativa de Rousseau sobre a origem do Estado foi retomada nos últimos séculos por diversas tradições, fazendo-se notar no seio do iluminismo escocês e nos trabalhos de Engels. James Scott, em seu recente livro Contra o grão de 2017, ecoa algumas teses de Rousseau. Dentre tantos pontos de convergência, três se destacam e serão analisados no decorrer neste artigo: i) de um lado, a variedade dos modos de ser e de se relacionar com a natureza dos povos sem Estado, a idade de ouro dos bárbaros; de outro, a estratificação dos povos sob o Estado, o empobrecimento dos agricultores cerealistas; ii) as condições ecológicas raras e especialíssimas favoráveis à emergência do aparelho estatal em oposição às dificuldades de se formar o Estado em regiões de abundância naturais, donde se faz necessário estabelecer a hipótese de mudanças climáticas que alteram as condições de existência; iii) e, por fim, a importância dos grãos para o processo civilizatório, isto é, a afinidade entre economia agrária de cereais e Estado
Duas concepções de estado de natureza: Rousseau e Buffon
In many texts, Buffon, resuming Locke’s conceptions, is in favor of the idea of a natural conjugal bond existing between man and woman. Rousseau, otherwise, critiques this idea. He assumes a state where men and women would live under certain conditions in which no relations (to each other) would be possible. Therefore, they would not be coerced into reciprocal duties and obligations, living in a state of absolute dispersion and isolation. To establish his theory, Buffon needs to burst with Rousseau. The main objective of this article is to elaborate and discuss the content of this rupture.Em muitos textos, Buffon mostra-se partidário da ideia da existência de um laço conjugal natural entre homem e mulher, retomando, assim, as concepções de Locke sobre o assunto. Por sua vez, Rousseau surge como um grande crítico desta ideia. Ele imagina um estado no qual homens e mulheres viveriam em determinadas condições que não os colocariam em relação uns com os outros e, por conseguinte, não os coagiriam a obrigações e deveres recíprocos, um estado de dispersão e de isolamento absolutos do homem. Buffon precisa, para fundar sua teoria, romper com Rousseau. Assim, elaborar e discutir o conteúdo desta ruptura tornam-se os objetos principais deste artigo
La Mettrie e o cartesianismo
The machine-man of La Mettrie appears constantly connected to the cartesian animal-machine. From this relation, it is possible to inquire whether there is indeed some continuity between the Cartesian proposal and that advocated by La Mettrie or, on the contrary, whether the latter effectively represents a criticism and a rupture with respect to the former. Our interpretation is that the germ of materialism – and La Mettrie does not escape it – can only develop in the condition of breaking completely with the cartesian doctrine. So, far from there being only one step between one and another philosophical theory, what exists is a radical and giant difference. There is no theoretical continuity between the cartesian animal-machine and the lamettrian machine-man. Unlike what happens in Descartes theory, particularly, in his dualistic conception that implies a discontinuity, Machine-man establishes a continuist thesis between men and animals. For La Mettrie, the passage from animality to humanity is not a violent passage, but a gradual one.O homem-máquina de La Mettrie aparece constantemente ligado ao animal-máquina cartesiano. A partir desta relação, é possível indagar se existe verdadeiramente alguma continuidade entre a proposta cartesiana e a defendida por La Mettrie ou, ao contrário, se esta última representa de modo efetivo uma crítica e uma ruptura em relação à primeira. Nossa interpretação defende que o germe do materialismo – e La Mettrie não escapa disso – só pode desenvolver-se na condição de romper totalmente com a doutrina cartesiana. Assim, longe de haver apenas um passo entre uma e outra teoria filosófica, o que existe é uma diferença radical e gigante. Não há uma continuidade teórica entre o animal-máquina cartesiano e o homem-máquina lamettriano. Diferentemente do que se passa na teoria de Descartes, particularmente, em sua concepção dualista que implica em uma descontinuidade, o Homem-máquina estabelece uma tese continuísta entre homens e animais. Para La Mettrie, a passagem da animalidade à humanidade não é uma passagem violenta, mas sim gradual
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