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    "A Barraca do Rui" : os laços sociais no fenómeno dos sem-abrigo

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    Dissertação de mestrado em Sociologia, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, sob a orientação de Sílvia Portugal.A presente dissertação procura compreender o papel dos laços sociais no fenómeno dos sem-abrigo. Epistemologicamente, a investigação enquadra-se num modelo reflexivo de ciência, assente num diálogo triplo: entre sujeito-investigador e sujeito-cuja-vida-é-investigada; entre a micro-realidade estudada e os macro-processos que, de modo circular, a influenciam e são por ela influenciados; e entre a empiria e a teoria, no sentido da sua reconstrução crítica em aproximação ao real. Deste enquadramento geral parte-se para a crítica do regime de verdade que domina as representações e acções dos elementos da sociedade domiciliada sobre quem vive na rua. Para ligar o modelo epistemológico geral à teoria mobilizada, recorre-se a uma visão figuracional que realça os processos pelos quais os vários níveis de integração e complexidade sociais se interpenetram. De um ponto de vista teórico, mobiliza-se o modelo das zonas de coesão social, entendendo o fenómeno dos sem-abrigo como processo de desafiliação. Olha–se, no entanto, para as múltiplas afiliações presentes na vida dos indivíduos sem-abrigo. A partir desta localização epistemológica e teórica, a biografia de Rui Botelho é interpretada como caso exemplar. Observam-se os pontos de inflexão ocorridos na sua vida, maioritariamente marcados por um aumento da precariedade, vulnerabilidade e pobreza que a localização na zona de desafiliação comporta. Observam-se os laços e as mudanças, produzidas pelas inflexões, na protecção e no reconhecimento que os laços garantiam. Deparamo-nos com uma protecção ausente ou reduzida e com um reconhecimento negado por todos os actores que não aqueles que se localizam também na zona de desafiliação. Este status quo leva a que Rui reivindique mais protecção, de modo a que possa aceder à habitação, e, sobretudo, que o reconheçam como cidadão e ser humano e não como «sem-abrigo». A importância dos laços é grande, mas é-o num plano representacional, que se prende com o que Rui considera que cada laço lhe deveria garantir e não garante, criando, assim, uma sensação de indignação pelo que é percebido como uma injustiça sempre presente na vida na rua. Viver na rua pode levar à eliminação de laços particulares, mas também à sua criação. Sobretudo, origina uma reconfiguração de laços de diferentes tipos. Apesar da maioria dos laços negar reconhecimento e de nenhum deles fornecer uma protecção significativa, eles estão bem presentes na zona de desafiliação em que Rui vive

    Governar a vida na rua: ensaio sobre a bio-tanato-política que faz os sem-abrigo sobreviver

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    Tese de doutoramento em Sociologia, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de CoimbraO fenómeno dos sem-abrigo é uma das mais claras expressões da relação com a alteridade desqualificada, apresentando-se quem vive na rua como uma manifestação ontológica e estrutural do sujeito-menos-que, uma entidade permanentemente constituída como inferior face aos tipos de sujeito positivamente valorizados pela norma estatístico-científica e pela normatividade dominantes. Informada por esta sensibilidade intelectual, esta tese assume-se como uma exploração ensaística de uma sociologia que observa as relações de poder, saber e subjetivação contemporâneas através do fenómeno dos sem-abrigo. Tomando este objeto como ponto de entrada na fase atual do modelo societal moderno ocidental, é para este último que a pesquisa se dirige. Para alcançar este objetivo, este fenómeno é interpretado como uma forma de vida na rua, uma expressão com duas ideias fundamentais. A rua é um espaço sociopolítico de exceção permanente no qual a normatividade que rege as vidas dos cidadãos domiciliados das classes médias e elites não se aplica de facto, sendo substituída pelo exercício arbitrário do poder por parte de não-sem-abrigo quando estes interagem com sem-abrigo. Isto constitui estes últimos sujeitos em exemplos expressivos do homo sacer na medida em que deixa as suas vidas expostas em toda a sua nudez a uma aleatoriedade de decisão e ação que as pode manter, estimular ou eliminar. São as ações de outros sujeitos que não os sem-abrigo que condicionam a forma das vidas destes últimos. Nomeadamente, esta modelação das vidas dos sem-abrigo é levada a cabo pelos diversos elementos do dispositivo médico-(a)moral de governo da vida na rua. Ainda que vários outros elementos componham esta rede, esta tese usa como ponto de entrada no dispositivo aquilo que pode ser designado como a sua parte oficial, i.e., aquela que tem como função explícita socialmente legitimada a produção de efeitos de realidade no fenómeno dos sem-abrigo. Esta parte oficial do dispositivo é composta, sobretudo, pelas instituições, atores, enunciados, espaços arquitetónicos e procedimentos das áreas da assistência (pública e privada) e da psiquiatria. Operando num regime de verdade de individualização patológica, a ação conjunta, agonisticamente articulada, destes elementos tem como objetivo e como efeito a modelação das condutas de quem vive na rua, procurando normativizar e normalizar os sem-abrigo, percebidos como sujeitos que vivem na rua por serem inerentemente anormativos (preguiçosos, mentirosos, alcoólicos, toxicodependentes) e anormais (doentes e/ou deficientes mentais). Isto concretiza-se numa sucessão de ações pelas quais é promovida a (re)subjetivação dos sem-abrigo como uma variação peculiar do homo oeconomicus neoliberal, portanto, um ser empreendedor, ativo, responsável por si mesmo. Porém, o tipo de homo oeconomicus que os sem-abrigo são estimulados (de modo mais ou menos coercivo) a ser emerge na rua e não é suposto que saia deste espaço de exceção. Deste modo, quem vive na rua deve transformar-se numa versão (para) pobre(s) do homo oeconomicus que nunca perde a sua dimensão sagrada pois permanece sempre exposto em toda a sua nudez a exercícios arbitrários de poder. Na lógica governamental do dispositivo, os sem-abrigo devem converter-se em homines oeconomicae-sacri, sujeitos-menos-que que, incorporando a sua inferioridade fundamental, passem a ser anormais e anormativos de um modo diferente, sobretudo, menos incómodo, participando nas atividades que exogenamente são decididas para eles (tratamentos psiquiátricos, cursos de formação escolar e profissional, atividades de “ocupação de tempos livres”, etc.). Para estimular esta forma de vida na rua, todas as outras formas de vida têm de ser sacrificadas, nomeadamente, aquelas que seriam passíveis de qualificar politicamente os sujeitos de um modo positivo. Deste modo, o dispositivo revela um modus operandi que, em simultâneo e com o mesmo peso relativo, é biopolítico e tanatológico. A vida dos sem-abrigo é de facto incentivada e protegida mas nem toda a vida é objeto deste esforço. Para promover a versão da vida nua que é a vida na rua, é necessário introduzir na vida um fragmento de morte, é necessário diminuir a vida, circunscrever as suas condições de possibilidade, pelo exato movimento pelo qual esta é feita manter-se. No governo da vida na rua, a vida e a morte tornam-se indissociáveis, revelando-se esta forma de ação incontornavelmente bio-tanato-política ao operar de modo a promover a sobrevivência dos sem-abrigo sem permitir que a sua vida extravase do campo delimitado da rua pela morte biológica ou pela vida como algo que não nudez.Homelessness is one of the clearest expressions of the relationship with disqualified alterity. As such, those who live on the street present themselves as ontological and structural manifestations of the subject-less-than, an entity permanently constituted as inferior in relation to the types of subject positively valued by dominant statistical-scientific norm and socio-juridical normativity. Informed by this intellectual sensibility, this thesis assumes itself as an essayistic exploration of a sociology that observes the contemporary relations of power, knowledge and subjectivation through homelessness. Taking this object as an entry point to the current stage of the modern Western societal model, it is to the latter that the research is directed. To accomplish this, homelessness is interpreted as a form of life on the street, an expression that has two fundamental ideas. The street is a socio-political space of permanent exception in which the normativity that governs the lives of middle-class and elite domiciled citizens is not de facto applicable, being replaced by the arbitrary exercise of power by non-homeless when they interact with the homeless. This turns the latter into expressive examples of homo sacer as it leaves their lives exposed in all of their bareness to a randomness of decision and action that can maintain, encourage, or eliminate them. The forms of life of the homeless are conditioned by the actions of subjects other than themselves. Namely, this shaping of the lives of the homeless is carried out by the various elements of the medical-(a)moral dispositif of government of life on the street. Although several other elements compose this network, this thesis uses as an entry point to the dispositif that which might be named as its official segment, i.e., that which has the socially legitimized explicit function of producing reality effects in homelessness. This official segment of the dispositif is mainly composed of the institutions, actors, statements, architectural spaces and procedures from the fields of (public and private) welfare and psychiatry. The collective action of these elements, coming together in an agonistic manner, operates inside of a truth regime of pathological individualization. As such, this collective action has both the objective and the effect of performing a certain conduction of the conducts of those who live on the street, aiming to normatize and normalize the homeless, as they are perceived as subjects that live on the street due to their anormativity (laziness, propensity to lie, alcoholism, drug-addiction) and their abnormality (mental illness and/or disability). This translates into a series of actions which fosters the (re)subjectivation of the homeless as a peculiar variation of neoliberal homo oeconomicus, therefore aiming to produce them as enterprising, active, self-responsible subjects. However, the kind of homo oeconomicus that the homeless are (more or less coercively) urged to be emerges on the street and is not supposed to exit this space of exception. Thus, those who live on the street are made to become a poor version of homo oeconomicus that never loses its sacred dimension because it always remains exposed in its bareness to arbitrary exercises of power. In the dispositif’s governmental logic, the homeless must become homines oeconomicae-sacri, subjects-less-than that, by accepting their fundamental inferiority, become abnormal and anormative in a different manner, above all, in a less disturbing fashion, participating in the activities that are exogenously decided for them (psychiatric treatments, educational and professional training courses, activities to occupy “leisure time”, etc.). In order to encourage this form of life on the street all other forms of life have to be sacrificed, above all, those that would be amenable to a politically positive qualification of the homeless. Thus, the dispositif reveals a modus operandi that is simultaneously and with the same relative weight biopolitical and thanatological. The life of the homeless is in fact encouraged and protected but not all life is the object of such an effort. To foster the version of bare life that is life on the street it is necessary to introduce a fragment of death in life, it is necessary to diminish life, to circumscribe its conditions of possibility, in the exact same movement by which life is made to persist. Life and death become inextricably linked in the government of life on the street, making this form of action inescapably bio-thanato-policical: its operation assures the survival of the homeless without allowing their life to leave the well limited field of the street through biological death nor through life as something other than bareness
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