Tese doutoramento em Psicologia (área de especialização em Psicologia da Justiça)O objectivo central desta investigação é construir, indutivamente, um modelo
teórico para compreender de que modo certos utilizadores de drogas ilícitas conseguem
manter os seus consumos „não problemáticos‟. Com este estudo pretende contribuir-se
para uma intervenção mais efectiva na minimização de padrões „problemáticos‟ e para
um debate mais complexo sobre o fenómeno, reconhecendo a multiplicidade de tipos de
consumos e de consumidores. Tais propósitos, aliados ao parco conhecimento sobre
utilizações „não problemáticas‟ e ao carácter frequentemente „oculto‟ dos seus
protagonistas, justificam a opção por um design de investigação qualitativo.
Começaram por se realizar entrevistas em profundidade a uma amostra intencional,
diferenciando-se três grupos de consumidores: „não problemáticos‟ (n=9), „exproblemáticos‟
(n=6) e „problemáticos‟ (n=6). Com base nos resultados do primeiro
grupo construiu-se uma primeira versão da referida teoria, que foi, depois, enriquecida e
validada através de uma nova consulta a estes participantes e da triangulação de fontes
(entrevistas com outros grupos) e de metodologias (observação directa em contexto
natural do uso de substâncias psicoactivas). O acesso aos sujeitos foi conseguido com
uma estratégia do tipo snowball, tendo-se partido de informantes privilegiados. A
análise dos dados baseou-se nas propostas da grounded analysis (Glaser & Strauss,
1967; Strauss & Corbin, 1990/1998).
O material empírico obtido com as entrevistas aos três grupos e com a
observação é amplamente congruente entre si. Sucintamente, a sua integração sugere
que os consumos tendem a iniciar-se pela curiosidade sobre as drogas e pelas vivências
com consumidores, sobretudo por estes facilitarem o acesso às substâncias. Tal
iniciação tende a ocorrer com a cannabis, seguindo-se um período, mais ou menos
longo, de experimentação de outras drogas ilegais, sobretudo estimulantes e
alucinogéneos. De acordo com os resultados, a manutenção de um consumo „não
problemático‟ implica um processo constante de auto-regulação do uso das drogas que é
informado, desde logo, por características dos consumidores, como a sua capacidade de
auto-controlo. É-o também pela qualidade das experiências de consumo, já que os
indivíduos vão moldando a utilização das drogas em função delas. Em concreto, as experiências positivas, que proporcionam prazer e que são as mais comuns, contribuem
para a sua manutenção. Os aspectos negativos experienciados com certas substâncias,
apesar de insuficientes para a cessação dos consumos, contribuem para a sua adaptação,
num esforço de os evitar. Finalmente, algumas experiências realmente negativas com o
uso de certas drogas, ainda que mais raras, fazem com que aquelas não voltem a ser
usadas. Tal processo de auto-regulação é ainda informado pelas vivências com outros
consumidores, pois operam como importantes meios de aprendizagem sobre as drogas.
Além disso, envolve a ponderação constante da relação entre os custos e os benefícios
desta prática, o desenvolvimento de concepções de risco e, em função destas, a adopção
de cuidados de gestão dos consumos, ainda que, muitas vezes, de uma forma não
conscientemente pensada nem aplicada. Realçam-se os cuidados que se referem ao tipo
de substâncias usadas e à regularidade da sua utilização, pois é em torno destes que
tende a definir-se o padrão de consumo actual. Este padrão, que tende a perdurar alguns
anos e a não ser algo fugaz, envolve, em geral, o uso regular de canabinóides e a
utilização apenas ocasional de todas as outras drogas ilícitas, sobretudo estimulantes. Na
nossa amostra, estes e outros cuidados são desenvolvidos com o intuito de manter a
funcionalidade nas várias áreas de vida, o que envolve três sub-objectivos: (i) controlar
o consumo (através de cuidados relacionados com o tipo de drogas usadas, a
regularidade e frequência dos consumos e os seus contextos e circunstâncias); (ii)
preservar a imagem social e evitar o estigma (mediante cuidados relativos à ocultação
do uso de drogas, à gestão da sua aquisição e aos contextos e circunstâncias do
consumo); e (iii) obter efeitos positivos e evitar experiências desagradáveis (a partir de
cuidados associados às quantidades e ao tipo de substâncias usadas, aos contextos e
circunstâncias dos consumos e às vivências com outros consumidores).
Em conclusão, este trabalho revela a necessidade de encarar o consumo de
drogas ilegais em toda a sua complexidade e como um contínuo, desde um pólo
„problemático‟ a outro „não problemático‟. Sugere, também, a relevância de aprender
com este último tipo de experiências, de modo a potenciar consumos „responsáveis‟ e a
minorar padrões „problemáticos‟. Além disso, aponta para a importância de promover
estratégias de gestão dos prazeres e dos riscos, e de agir, inclusive através de pares, para
estimular o envolvimento dos consumidores nos esforços interventivos e a
concretização de um trabalho horizontal, dinâmico e em contexto natural.The main objective of this research is to construct, inductively, a theoretical
model to understand how certain users of illegal drugs manage to keep their
consumption „non-problematic‟. With this study we want to contribute to a more
effective intervention in minimizing the patterns of problematic use, and to encourage a
more complex debate about this phenomenon, recognizing the multiplicity of types of
use and users. These aims, along with the scanty knowledge regarding „nonproblematic‟
patterns of use and the frequently „hidden‟ nature of its protagonists,
justify the option for a qualitative research design. First, in-depth interviews were
conducted with an intentionally selected sample, composed by three groups of users:
„non-problematic‟ (n=9), „ex-problematic‟ (n=6) and „problematic‟ (n=6). Based on the
results of the first group the theoretical model was constructed, and, posteriorly,
broadened and validated by means of a new consultation with these participants and a
triangulation of sources (interviews with other groups) and methodologies (direct
observation, in the natural context, of the use of psychoactive substances). Access to the
subjects was achieved through snowball-type sampling, beginning with privileged
informants. Analysis of the data was based on grounded analysis procedures (Glaser &
Strauss, 1967; Strauss & Corbin, 1990/1998).
The empirical material obtained from interviews with the three groups and from
the observation is amply congruent in itself. Briefly, the integration of this material
shows that consumption tends to begin with curiosity about drugs and by experiences
with users, especially since they facilitate access to the substances. This initiation tends
to occur with cannabis, followed by a more or less lengthy period of experimentation
with other illegal drugs, especially stimulants and hallucinogens. According to the
results, maintaining „non-problematic‟ consumption implies a constant process of selfregulation
of drug use which is influenced, from the start, by the characteristics of the
users, such as their capacity for self-control. It is also influenced by the quality of the
experiences of consumption, since it is around these that individuals shape the use of the
drugs. In particular, positive experiences, which bring pleasure and are the most
common, contribute to continuing use. The negative aspects experienced with certain substances, although not enough to halt consumption, contribute to changes in its use, in
an effort to avoid them. Finally, some really negative experiences with the use of certain
drugs, although more infrequent, cause them not to be used again. This process of selfregulation
is also influenced by experiences with other users, since they serve as
important sources of information about the drugs. Besides, there is a constant weighing
of the relationship between the costs and benefits of this practice, the development of
concepts of risk and, as a function of these, the adoption of precautions for managing
consumption, even if frequently these are not consciously thought out or applied. These
precautions refer mainly to the type of substances used and the regularity of its use,
since it is around these that the actual pattern of use tends to be defined. This pattern,
which tends to last several years and not be something fleeting, generally involves the
regular use of cannabinoids and the only occasional use of all the other illegal drugs,
especially stimulants. In our sampling, these and other precautions are developed with
the intent of maintaining functionality in the different areas of life, which involves three
sub-objectives: (i) controlling consumption (through precautions related with the type of
drugs used, the regularity and frequency of use, and its contexts and circumstances); (ii)
maintaining social image and avoiding stigma (through precautions regarding hiding the
use of drugs, managing their acquisition and selecting the contexts and circumstances of
use); and (iii) achieving positive effects and avoiding unpleasant experiences (through
precautions associated with the quantity and the type of substances used, the contexts
and circumstances of the uses and experiences with other users).
In conclusion, this project reveals the need to face illegal drug use in all of its
complexity and as a continuum, from the „problematic‟ experiences at one end to the
„non-problematic‟ ones at the other. It also suggests the relevance of learning from this
last type of experiences, in order to increase „responsible‟ consumption and minimize
„problematic‟ patterns. Furthermore, it points out to the importance of promoting
strategies to manage enjoyment and risks, as well as acting, namely, through peers, to
stimulate the involvement of users in the efforts of intervention and to achieve a
dynamic and horizontal work, in a natural context.Fundação para a Ciência e Tecnologia - bolsa de investigação SFRH/BD/27922/2006, no âmbito do Programa Operacional Ciência e Inovação (POCI)
2010 apoiado pelo Fundo Social Europeu (FSE)