Fischer, Nilton Bueno

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Lume 5.8

U M A POLÍTICA DE E D U C A Ç Ã O PÚBLICA POPULAR DE JO-VENS E A D U L T O S Nilton Bueno Fischer* Um governo municipal que se qualifique como popular deve materializar seu compromisso com setores populares em políticas públicas de educação. Além de ampliar a oferta de educação pública gratuita, garantindo a todos o acesso e a permanência nos serviços educacio-nais, tais políticas devem, também, possibilitar a participação de todos na sua construção, conferindo-lhes uma nova qualidade. Dentre as ações a serem implantadas na área educacional, certamente um governo que mantenha compromisso com os setores populares deve concretizar essa opção por meio de oportunidades educacionais voltadas àqueles que, historicamente, são excluídos da escola e na escola, como é o caso da alfabetização e pós-alfabetização de jovens e adultos. Neste artigo, tomando como referência o município de Porto Alegre (RS), busca-se estabelecer alguns marcos e se enunciam em linhas gerais alguns desafios a serem enfrentados para uma política popular de educação de jovens e adultos. Porto Alegre: uma Trajetória de Muitos A aliança entre a alfabetização e a valorização da cultura popular, com o propósito da ampliação da participação dos setores populares, tem * Secretário de Educação de Porto Alegre, RS. longa trajetória no Rio Grande do Sul e, particularmente, no município de Porto Alegre. Já no princípio deste século, os socialistas, reunidos em torno do jornal Echo Operário, fundaram na cidade as Escolas Operárias e as Bibliote-cas Populares, organizando programas de alfabetização para trabalha-dores. Tais programas visavam à sua instrumentalização para a leitura do material informativo do movimento e dos escritos teóricos que embasavam as idéias da luta operária da época, o que possibilitaria a conscientização da necessidade de organização. A vanguarda do movimento socialista colocou, pela primeira vez, a vinculação nítida entre educação e política. Pela primeira vez, a questão da "educação das massas" esboçava-se como uma tarefa de instrumentalização política do operariado na luta social. A educação surgia como parte integrante da luta dos trabalhadores pela direção da sociedade. Questões relativas a como educar, quais conteúdos privilegiar na escola pública, educação nos sindicatos, educação e política, e t c , eram preocupações e permearam a imprensa operária dessa época. O anarco-sindicalismo, dos anos 10, com a sua concepção de interna-cionalismo proletário também se preocupou com o analfabetismo generalizado dos trabalhadores e com a necessidade de vinculação da educação popular à transformação social. Esse movimento fundou as Escolas Modernas Racionalistas, com uma concepção pedagógica de Educação Integral, onde o trabalho era encarado como o fundamental princípio educativo e, também, os Centros de Estudos Sociais. A partir de então, fora do âmbito desses movimentos, a questão do analfabetismo passa a ser tratada como uma pecha de responsabilidade do analfabeto. Os programas e campanhas que se desenvolvem no Brasil, tanto por iniciativas da sociedade civil (Ligas) como pelo poder público (campanhas das décadas de 40 e 50), e que marcaram sua Em A b e r t o , Brasíl ia, ano 1 1 , n ° 5 6 , ou t . / dez . 1 9 9 2 presença também em Porto Alegre, tratam o analfabeto do ponto de vista da minoridade civil kantiana e a problemática do analfabetismo é encarada com a visão sanitarista da praga a ser erradicada. Os movimentos de educação e cultura popular que invadem o Brasil na década de 60 , contrapondo-se a essa visão hegemônica sobre a Educação de Adultos, também chegam a Porto Alegre com toda a sua intensidade. E chegam através da iniciativa do poder público, mais precisamente, da Secretaria de Educação e Cultura (SEC), do Governo do Estado, assessorada por uma equipe com larga experiência na área da educação e cultura da JEC, JUC, UNE, UGES e UEE, constituindo-se, então, no centro articulador, no estado, das atividades relacionadas com a educação popular, integrada à Campanha Nacional de Alfabeti-zação, inspirada e coordenada por Paulo Freire. O Grupo de Cultura Popular, criado na Divisão de Cultura da SEC, pretendia, "através de um trabalho de coordenação, dar às atividades daquele setor um sentido eminentemente popular" (Costa, 1 9 9 1 , p.35) e realizou suas atividades, integrado com o Serviço de Educação de Adolescentes e Adultos da mesma secretaria. As ações educativas desenvolvidas em 1 8 turmas no ano de 1 963 se realizaram em conjunto com Associações de Bairro, Círculo de Pais e Mestres, Clubes de Mães, Trabalho Comunitário de Recuperação de Menores, Centros Populares de Cultura das vilas, Secretaria da Habitação, Grupo de Assistência Judiciária dos Alunos de Direito, Grupo de Assistência Médica e Educação Sanitária de Alunos da Medicina, Grêmios de Estudantes, etc. Junto a eles funcionavam Escolinhas de Arte com atividades de Teatro, Poesia, Cinema e Música. Essa mobilização efervescente ocorre entre 1 963 e início de 1 964, em meio à proposta pedagógica de Paulo Freire e suas atividades ou cursos, prevendo em 1 964 a implantação de 1 30 unidades, somente na capital, seriam realizadas em grupos escolares, quartéis, paróquias, associa-ções, sindicatos, etc. Tinham por objetivo a "ampliação das oportuni-dades de educação para o povo, na perspectiva da superação de sua marginalidade em relação aos bens culturais e econômicos da socieda-de" (Costa, 1 9 9 1 , p.36). Desse movimento também fez parte, em Porto Alegre, a criação de 50 Círculos de Cultura, com ações de alfabetização abrangendo "vilas populares, empregadas domésticas, operários de fábricas, doentes internos da Santa Casa e vilas marginais". (Costa, 1 9 9 1 , p.37), como também a criação do Instituto de Cultura Popular do Rio Grande do Sul (ICP-RS), fundado em 14 de dezembro de 1963, sob a presidência do professor Ernani Fiori. O ICP-RS tinha entre outros objetivos, os de "atender à democratização da cultura através da alfabetização e outros instrumentos educativos que possibilitem o acesso do povo às formas culturais" e "manter experiências-piloto como laboratório de pesquisa, de técnicas de cultura popular". Todas as suas atividades estavam relacionadas com "a valorização e expansão da cultura popular e da educação popular, inclusive prevendo o preparo de pessoas para atuarem nesta direção" (Costa, 1 9 9 1 , p.40). 0 Golpe de 64 ceifou os planos e perspectivas desse movimento de educação e cultura popular no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, juntamente com a ousadia dos sonhos de todos os que acreditavam no projeto de emancipação popular, através da valorização de sua cultura. Porém, o corte da ousadia não foi suficiente para exterminar o sonho e o conhecimento construído no engajamento apaixonado de um ideário em sua amplitude algo romântico, algo populista, algo militante, mas profundamente humanista. Muitos desses agentes se engajaram individualmente nas ações do Mobral quando seus programas se instalaram no estado via Secretaria de Educação e Cultura do Estado e Secretaria de Educação, em Porto Alegre. Em A b e r t o , Brasíl ia, ano 1 1 , n ° 5 6 , ou t . / dez . 1 9 9 2 Essa tradição da cultura portoalegrense em ações de Educação de Adultos, ora numa dimensão autoritária no seu enfoque didático-peda-gógico exclusivo, ora numa dimensão político-pedagógica em seu enfoque popular, é elemento fundamental, hoje, na mobilização de seus cidadãos em torno de um Projeto de Educação que se propãe, em sua concepção política e pedagógica, a trabalhar com a inclusão dos excluídos da escola e na escola, entre eles os jovens e adultos populares. Uma ação educativa com tal alcance, para ser realizada numa perspec-tiva conseqüente e responsável, necessita da presença clara dessa história vivida, anteriormente, enquanto movimento coletivo instituinte, e de uma reflexão teórica crítica sobre como têm se materializado as práticas educativas com jovens e adultos, configuradas ora como movimentos sociais em educação, ora como políticas públicas. Uma Reflexão Necessária Historicamente, a trajetória desenvolvida pela Educação de Jovens e Adultos, pode-se afirmar, percorre dois caminhos, traçados sobre concepções e práticas distintas. De um lado, num caminho instituinte, emergem um conjunto de ações educativas, permeadas por princípios teóricos que aliam a alfabetização ao movimento da organização popular. É uma concepção onde o processo educativo é visto como emancipador, na medida em que promove a conscientização política dos setores populares e incentiva a sua organização e autonomia, engajado num projeto de transformação social. Essa compreensão político-pedagógica da educação das classes populares se configura, principalmente, a partir da década de 60 como Educação Popular. De outro lado, num caminho instituído, percorrem práticas pedagógicas sistematizadoras de uma educação voltada ao processo de transmissão de um conjunto mínimo de conhecimentos sistematizados. O processo educativo visa a suprir a não-escolarização na idade considerada própria e suprimir a pecha nacional da suposta marginalização cultural da população que, em grande parte, seria responsável pelo atraso econô-mico do país. As diversas tentativas do poder público em corrigir essa, assim considerada, distorção materializam as Políticas Públicas em Educação de Adultos, desenvolvidas a partir da década de 40 . Tais políticas, ao serem destinadas aos que "não freqüentaram a escola na idade própria", fazem com que o poder público reforce a normalidade das políticas da chamada educação regular, voltada às crianças, e, ao mesmo tempo, justif ique o caráter emergencial, conjuntural e transitório que assumiram, e ainda assumem, as políticas de educação voltadas para o adulto. Esses dois caminhos construídos pelas práticas educativas voltadas à população adulta se constituem e instituem historicamente como duas grandes orientações teórico-práticas: uma que busca, através da poli-tização do fazer pedagógico, a transfiguração da esfera pública pela ampliação da participação popular; outra que se formaliza como política pública voltada para a sistematização didática do fazer pedagógico, direcionado aos setores populares. A formulação das Políticas Públicas é a resultante de um processo de institucionalização de demandas coletivas colocadas pela mobilização popular. O poder público, ao assumir a interlocução com o movimento social, institucionaliza novas formas de relação que lhe permitem manter a regulação e a integração social. Essa regulação institucional delimita os espaços de possibilidade política da ação e expressão coletiva de desejos, ao tornar o poder público o interlocutor preferencial e oficial. Porém, ao mesmo tempo, essa emergência de demandas coletivas, frente ao poder público, introduz uma nova dinâmica de interação e provoca a ampliação e modificação do espaço institucional, tornando Em Aberto, Brasília, ano 1 1 , n° 5 6 , ou t . / dez . 1 9 9 2 obrigatória a mudança de legislações e instituições que já não corres-pondem às novas relações que se estabelecem. Frente a essa compreensão de como ocorre o processo de formulação das Políticas Públicas, pode-se afirmar que a articulação entre as diferentes expressões assumidas pelos movimentos sociais, ao longo de diferentes momentos históricos, e a trajetória seguida pelo poder público brasileiro na formulação de suas políticas educacionais se caracteriza por uma flagrante antecipação deste em relação às deman-das educacionais da coletividade. Esse caráter antecipatório das políticas educacionais em Educação de Adultos pode ser explicado pelo entendimento, em primeiro lugar, de como se dá o processo de formulação institucional das políticas públicas, e, em segundo lugar, da origem das idéias e tentativas de implantação da educação popular. No primeiro caso, a delimitação do espaço político de possibilidades da ação educativa, que uma política pública determina, permite ao poder público manter o controle político das práticas e expressões coletivas emergentes ao estabelecer o caráter de sua interlocução. Assim, a criação de uma demanda antecipada pode assumir o caráter político de integração e desmobilização de movimentos político-pedagógicos, de acordo com a relação de compromisso estabelecida entre o poder público e os setores populares. Muitas vezes isso ocorre pelo escamo-teamento das próprias demandas populares, através da apropriação do seu discurso reivindicativo, tornando legítima a ação político-adminis-trativa do poder público, enquanto representante dos anseios populares, e reconhecendo, portanto, a sua competência na direção e coordenação das ações educativas. Uma outra explicação para a antecipação à demanda encontra suas raízes no bojo da doutrina liberal, onde as idéias de educação para todos estabelecem a coerência indispensável com um sistema de idéias que advoga a universalização dos direitos. A educação é, então, entendida como uma exigência individual e social, necessária a todos. E, portanto, a todos deve ser levada mesmo que a "consciência" dessa necessidade não seja coletiva. Daí a necessidade de uma antecipação à emergência da consciência uma vez que a imposição do exercício do direito à educação, através de normalizações político-administrativas e legais, podem, de certa maneira, desencadear o processo de conscientização coletiva do direito à educação. Mesmo quando esse "processo de conscientização" implica num "certo grau de coerção sobre as cons-ciências" (Beisiegel, 1988, p.50). Esse escopo teórico, com raízes em Platão e com ressonância máxima na Ilustração, se materializa em diferentes concepções e práticas de caráter iluminista e que se configuram - seja através da ação do poder público, das elites intelectuais e culturais ou das vanguardas políticas - como processo de elevação da consciência individual e social, em busca de uma maioridade cidadã no seu significado kantiano. Porém, um delineamento teórico desta magnitude deve ser suficiente-mente cauteloso, evitando a homogeneização do conjunto das práticas educativas realizadas em Educação de Adultos. Estas, ao se constituí-rem historicamente, assumem significados conjunturais próprios que expressam o movimento de conjunção/oposição da relação público/po-pular. Assim é que o movimento popular, ao se apropriar da universa-lização do direito à educação, devolve ao poder público seus próprios argumentos e o compromete na ampliação da oferta de educação pública. Desafios Assim, numa Porto Alegre atual (a exemplo de muitas outras), com seus 150 mil jovens e adultos analfabetos, os quais compartem, com Em A b e r t o , Brasíl ia, ano 1 1 , n ° 5 6 , ou t . / dez . 1 9 9 2 muitos outros, outras tantas carências, produzidas por sua exclusão sistemática do direito de pertinência à esfera pública da cidadania, vetados no seu direito a educação, saúde, moradia, lazer, trabalho e t c , conceitos como educação pública popular e cidanania ainda permane-cem revolucionários e demarcam os desafios a serem enfrentados. Esses desafios abrangem uma gama variada de elementos. Vão das concepções, que devem dar conta da intencionalidade, das finalidades perseguidas e das orientações metodológicas assumidas, passam pelo desenho institucional e programático, que deverá concretizar a política em serviços, estrutura, regras, financiamento etc. E devem propor esquemas e diretrizes que levem à formação integral e permanente dos educadores. Ainda que o detalhamento desses elementos fuja aos objetivos deste artigo, é importante relevar alguns pontos. A ousadia de uma ampliação institucional, com caráter de serviço permanente, enfrenta o desafio, cotidianemente renovado, da supera-ção da escola regular como modelo de referência para educação de jovens e adultos. Desafios que se manifestam tanto nos aspectos pedagógicos quanto nos administrativos. A busca de superação, se alimenta em duas vertentes teórico-práticas que contribuem na construção deste projeto educativo popular. Por um lado, as contribuições atuais da epistemologia genética e, por outro, a revisitação ao ideário da educação popular dos anos 60 num movimento circunvolutivo de aproximação e distanciamento. A aproximação se manifesta pelo encontro com a mesma garra de uma educação voltada para a construção de uma nova sociedade através da conscientização do sujeito-educando e mediada pela busca da dialogicidade freiriana. 0 distanciamento resulta da ampliação da mirada que, agora, percebe: a sociedade como plural, cujos referenciais não são mais o desenvol-vimento e o nacionalismo, mas a cidadania; a complexidade social dos sujeitos envolvendo o setor não organizado da sociedade constituído por desempregados, semi-empregados e biscateiros que fogem à clássica categoria de trabalhador; a conscientização na sua dimensão maior de resgate da dignidade humana e não somente na da formação do crítico-político-militante. A construção desse projeto popular de educação passa, em grande parte, pela qualificação do coletivo de professores. E, sem dúvida, a garantia institucional de formação permanente em serviço de seus professores apresenta-se como um avanço inovador no campo das políticas públicas em educação de jovens e adultos. Essa formação, mais do que uma simples capacitação teórico prática dos professores, se constitui num processo investigatório de constru-ção de conhecimento sobre quem é esse sujeito adulto e como se processa a compreensão da epistemologia genética frente a esse maior conhecimento. Essa busca traz como conseqüência vários questionamentos a respeito da estruturação e funcionamento de uma prática de educação formal, embebida nos postulados da informalidade de uma educação popular revisitada. Que conteúdos se instituem como fundantes de um currículo escolar fecundo de expressão social? Encontrar a resposta é um desafio que exige do coletivo dos professo-res, além da postura de pesquisador, muita sensibilidade. E, também, a capacidade generosa de estabelecer uma relação político-pedagógica amorosa com esse adulto-aprendiz, percebendo-o em toda a sua dimensão humana, como sujeito frente à vida que busca, na sobrevi-vência cotidiana, o respeito à sua dignidade de cidadão. Em A b e r t o , Brasíl ia, ano 1 1 , n ° 5 6 , ou t . / dez . 1 9 9 2 Referências Bibliográficas BEISIEGEL, Celso Rui. Cultura do povo e educação popular, ln: VALLE, Edênio, QUEIROZ, José J. (Orgs.). A cultura do povo. São Pau Io: Cortez: Instituto de Estudos Especiais, 1988. COSTA, Marisa C. Vorraber. Manifestaçães iniciais da educação liber-tadora no Rio Grande do Sul. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n .1 , p.31-43, jan/jun. 1 9 9 1 . DORNELES, Malvina do Amaral. O Mobral como política pública: a institucionalização do analfabetismo. Porto Alegre, 1990. Disserta ção (Mestrado) — UFRGS. PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Educação. Quadros sínteses da primeira administração municipal : setembro/1989 a dezem bro 1992. Porto Alegre, 1992. PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Educação. Educação de jovens e adultos : uma proposta para a administração popular - 93 /96 . Porto Alegre, 1992. Em Aberto, Brasília, ano 1 1 , n° 56, out./dez. 1992 

Uma política de educação pública popular de jovens e adultos

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