Ferla, Alcindo Antônio

Lovatto, Andrea Cristina

Portuguese

Lume 5.8

Famílias em situação de pobreza: do risco à proteçãoAndrea C. Lovatto, Alcindo FerlaO objetivo deste estudo, que consistiu em uma revisão sistemática de literatura, foi identificar as especificidades dos contextos familiares em situação de pobreza com vistas à análise do cuidado em saúde. Conhecer as especificidades da cultura dos grupos populares, parcela significativa da população do país, é fundamental para a realização de um trabalho efetivo de cuidado em saúde. Nas fontes pesquisadas constatou-se que nesta camada da população as famílias possuem características próprias, muitas vezes desconhecidas pelos profissionais de saúde. Apesar do grande número de famílias que vive em situação de pobreza, a maior  parte  das  afirmações  de  senso  comum  sobre  família  se  referem  às características das famílias de classe média (Duarte,  1995).  Estas afirmações se referem à família nuclear. Quando pensamos em família, o que está presente no nosso imaginário  é  uma família  conjugal,  da  qual  fazem parte  um homem, uma mulher e os filhos, sendo que a casa é o lugar das mulheres e das crianças e a rua  como o lugar dos homens. Esta realidade de família, composta por pai, mãe e crianças não parece fazer muito sentido quando se pensa em famílias de classes populares. Fonseca (2004), em extensa pesquisa com famílias de classes populares na Vila do Cachorro Sentado, em Porto  Alegre,  percebeu  que  o  modelo  de  família  não  se  parecia  com esse modelo  de  família  conjugal  presente  no  imaginário  das  pessoas.  A autora  em questão constatou: prevalência  de  uniões  consensuais  (90%  dos  casais),  frequência  de  famílias compostas de mãe sozinha e filhos (mais ou menos 25% do total), alta taxa de instabilidade  conjugal  e  recasamento  (afora  as  unidades  mãe-filhos,  20% das mulheres separaram-se de seus maridos durante os dois anos de pesquisa), e alta taxa de circulação de crianças (50% das mulheres com mais de 20 anos tinham colocado pelo menos um filho num lar substituto). (p. 53)Além disso, a autora constatou que menos de um terço das mulheres com idades entre 35 e 55 anos vive com o pai do primeiro filho (Fonseca, 2004). Considerando que existem inúmeras formas de organização familiar, tomar apenas uma (o  modelo  de  família  nuclear)  como certa  ou  ideal  faz  com que  os  outros modelos  pareçam errados  ou  mesmo  prejudiciais  para  as  crianças.  Além disso, qualquer desvio do padrão de família nuclear faz com que a família seja vista como incompleta e desestruturada. As famílias que fogem a “normalidade” das famílias nucleares  são  as  mais  responsabilizadas  por  problemas  emocionais,  desvio  de comportamento e fracasso escolar (Szymanski, 2002). Outro fator que deve ser considerado é a identificação dos fatores de risco e de proteção presentes.  São considerados fatores  de risco  obstáculos  individuais  ou ambientais que aumentariam a vulnerabilidade da criança para resultados negativos no seu desenvolvimento. Alguns exemplos de fatores de risco são: condições de pobreza, rupturas na família, vivência de algum tipo de violência, experiências de doença  no  próprio  indivíduo  ou  na  família  e  perdas  importantes  (Pesce,  Assis, Santos & Oliveira, 2004). Diversas situações de risco estão presentes em todas as famílias,  porém  as  mais  prejudicadas  parecem  ser  as  famílias  pobres,  pois  os indivíduos  têm  uma  grande  probabilidade  de  serem  expostos  a  adversidades múltiplas (Walsh, 2005).Apesar  do  evidentes  riscos  aos  quais  as  crianças  estão  expostas,  eles  não determinam o futuro das mesmas. Segundo Masten (2001), percebendo que muitas crianças que viviam em ambientes de extrema adversidade se tornavam adultos competentes e carinhosos, alguns psicólogos e psiquiatras passaram a estudar o fenômeno  da  resiliência em  crianças  em  situação  de  risco  para  problemas  de desenvolvimento, nos anos 70. Estes pioneiros argumentavam que pesquisas com crianças  que  se  desenvolveram  bem  em  contextos  de  risco  e  adversidades poderiam guiar intervenções e informar o que fez a diferença para essas crianças. Segundo  a  autora,  o  estudo  de  crianças  resilientes  retirou  o  foco  de  teorias baseadas no déficit, passando a focalizar os aspectos positivos do desenvolvimento. Existem alguns fatores de proteção para a resiliência. Segundo Eisenstein e Souza (1993),  fatores  de  proteção  são  “recursos  pessoais  ou  sociais  que  atenuam ou neutralizam o impacto do risco.” (p. 19-20) Entre os fatores protetores contra o risco, segundo os autores, destacam-se: bom funcionamento familiar, educação, atenção, afeto, apoio emocional, saneamento ambiental, boa utilização do tempo livre, prática de esportes, atividades artísticas e culturais, educação em saúde, redes sociais de apoio e respeito aos direitos de cidadania. Podemos  perceber  que  não  se  pode  pensar  nas  crianças  separadamente  do contexto  onde  elas  estão  inseridas,  ou  seja,  da  família  e  demais  ambientes  de convívio. Segundo Walsh (2005), as pesquisas têm mostrado que a resiliência em crianças está fortemente vinculada ao contexto familiar  e social  em que ela está inserida pois  a resiliência  das crianças às dificuldades é maior  quando elas têm acesso a pelo menos um pai/mãe atencioso, um cuidador ou outro adulto que lhes dê  apoio  na  sua  família  ampliada  ou  mundo  social.  A resiliência  percebida  na unidade  familiar  como  um  todo  é  denominada  resiliência  familiar.  Através  da abordagem da resiliência, pode-se fortalecer os aspectos positivos destas famílias.Walsh (2005) apresenta algumas diretrizes práticas para fortalecer famílias que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade. Estas diretrizes são utilizadas para apoiar os esforços da família para administrarem suas vidas em meio a tantas adversidades: 1) identificar as potencialidades e recursos familiares que capacitam as famílias  e  confiar  neles;  2)  usar  uma abordagem familiar  para  os  problemas individuais; 3) os serviços devem ser flexíveis e holísticos; 4) enfatizar a intervenção precoce e prevenção; 5) formar parcerias estruturadas na comunidade.  A abordagem da resiliência possibilita a construção de planos de cuidado centrados na  produção  da  saúde  e  baseados  no  contexto  singular  dos  indivíduos  que demandam cuidado. Esta abordagem vai  ao encontro da proposta das linhas de cuidado,  cujo  conceito  central  é  o  da  integralidade  e  busca  mudar  o  modelo assistencial vigente. De acordo com Merhy (2002), o uso de tecnologias duras (as que estão inscritas  em máquinas e instrumentos)  prevalecem no atual  modo de produção de saúde. As outras tecnologias citadas pelo autor são: as tecnologias leve-duras, que são definidas pelo conhecimento técnico, e as leves, que são as tecnologias das relações.Sobre este modelo, Franco (2003) afirma que para um serviço produzir saúde, este deve  basear  seu  trabalho  nas  tecnologias  leves  e  leve-duras.  De  acordo  com Ceccim  (2007),  “atender  integralmente  supõe  corresponder  aos  componentes singulares  em  que  se  inscreve  uma  demanda  em  saúde,  apreendendo  as singularidades e não apenas as homogeneidades daquilo que demanda cuidado” (s.p.) Mostra-se fundamental a construção de planos de cuidado que ampliem o foco da doença  do  indivíduo,  marca  da  clínica  biomédica.  A abordagem  da  resiliência, focando a compreensão do indivíduo em seu contexto singular e nos fatores de proteção presentes, permite a construção de um plano de cuidados não centrado na cura da doença, mas na promoção da saúde. De um modo geral, os dados obtidos enfatizam a importância do conhecimento da diversidade cultural existente entre os grupos sociais que co-existem em nosso país,  para  a  realização  de  um  trabalho  efetivo  com  a  população  mais  pobre.  Esse conhecimento é fundamental para os profissionais de saúde, que frequentemente não têm estes aspectos considerados em sua formação, e que atuam diretamente junto às famílias carentes. Mostra-se importante também um maior envolvimento dos trabalhadores  de  saúde  com a  formulação  das  políticas  públicas.  Além disso,  é fundamental um maior investimento em políticas públicas para reduzir o quadro de adversidades presente na vida de grande parcela da população do país.Referências:CECCIN,  Ricardo  Burg.  Linha  de  cuidado  em  obstetrícia  e  neonatologia: dispositivo para a integralidade da atenção em saúde da mulher e uma imagem para a educação dos profissionais     de     saúde.      Disponível      em http://www.abenfors.org.br/cobeon/e-  book/mesas/6/cobeon_24.pdf  Acesso  em:  20 out. 2009. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família.  In:  RIBEIRO, Ivete;  RIBEIRO, Ana Clara. (Orgs).  Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira . São Paulo: Loyola, 1995. p.13-20. FONSECA, Cláudia.  Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. FRANCO, Tulio.  Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. Disponível                                                                                 em  www.professores.uff.br/.../integralidade_na_assistencia_a_saude_tulio_franco_helvecio_mag alhaes.pdf . Acesso em 27 out. 2009. EISENSTEIN, Evelyn; SOUZA, Ronald Pagnoncelli. Situações de risco à saúde da crianças e adolescentes. Petrópolis: Vozes, 1993. MASTEN, Ann. Ordinary magic: resilience processes in development. American Psychologist, v.56, n.3, p.227-238, 2001. MERHY, Emerson. A cartografia do trabalho vivo. São Paulo, Hucitec, 2002.PESCE, Renata et al. Risk and protection: looking for an equilibrium that provides resilience. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v.20, n.2, mai-ago, 2004. SZYMANSKI,  Heloisa.  Teorias  e  "teorias"  de  famílias. In:  CARVALHO,  Maria  do Carmo (Org).  A família contemporânea em debate.  São Paulo: EDUC / Cortez, 2002. p.23-28. WALSH, Froma. Fortalecendo a resiliência familiar. São Paulo: Roca, 2005. 

Famílias em situação de pobreza : do risco à proteção

https://lume.ufrgs.br/bitstream/10183/132103/1/000762366.pdf

Famílias em situação de pobreza : do risco à proteção

Abstract

Similar works

Full text

Available Versions

Lume 5.8