Resumo
Este trabalho discute as noções de visão e verdade a partir do romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Para tal, mantém-se numa preocupação hermenêutica, compreendendo que as partes da obra de arte constroem sentidos copertinentes ao seu todo – este, por sua vez, é incompreensível fora de suas partes. Elucidando alguns personagens e episódios, encaminhamos, portanto, a elaboração poética de toda a obra; isso não exaure, contudo, suas possibilidades de interpretação. Ao desvelar outras vistas para a cegueira e cegueiras para a vista, Ensaio sobre a cegueira remete-se indiretamente à obra platônica e ao seu legado à nossa cultura, ainda que não seja uma obra de filosofia, nem se preocupa com a discussão e elaboração conceitual. Argumentamos como o romance desconstrói o privilégio ocidental dado à visão, mostrando a falibilidade da verdade como princípio norteador da existência humana. Alinhando-se ao autêntico horizonte da obra de arte, que é o de operar, mostrar, manifestar sentido – e daí abrir a possibilidade para qualquer conhecimento e representação –, a obra saramagueana dialoga com questões essenciais sem fazer concessões a contextos ou conjunturas específicas, isto é, sem restringir a obra a uma região ou época; não deixa, por outro lado, de cuidar e pensar nos envios e destinos históricos do ser humano. Ensaio também articula um sentido ético na cegueira, pois esta surge, em um de seus sentidos, como o horizonte em que os seres humanos vislumbram seu mistério, que é comum, compartilhado.