Marcelo Dalla Vecchia

Journal Health NPEPS

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 Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                          ISSN 2526-1010  298  http://dx.doi.org/10.30681/252610103209                                            EDITORIAL  Notas sobre a conjuntura da política de drogas no Brasil  Notes on the Brazilian drug policy contexto  Notas sobre la coyuntura de la política de drogas en Brasil  Marcelo Dalla Vecchia1  Ao menos desde o início do século XIX, em nosso país, o consumo de determinadas drogas, tornadas ilícitas, foram tratadas como caso de polícia. O Brasil é pioneiro em medidas antidrogas, com a proibição do “pito do pango”, no Rio de Janeiro, em 1830. Ou seja, nos especializamos em tratar como caso de polícia o que se configura, antes de tudo, como questão social. É digno de nota, neste sentido, que somente no ano de 2005 vem a público uma Política Nacional sobre Drogas, evidenciando o descrédito com que a questão foi tratada na história brasileira. Avanços tímidos na experimentação de programas de prevenção e práticas de cuidado integral às pessoas com problemas devidos ao uso de álcool e outras drogas convivem com o peso da mão dura da lei, cujo alvo são prioritariamente jovens pobres das periferias urbanas brasileiras, envolvidos com o tráfico de drogas ilícitas. O papel da chamada Nova Lei de Drogas, de 2006, no processo de produção do encarceramento em massa de jovens negros, pouco escolarizados e moradores das periferias urbanas brasileiras já foi fartamente documentado e analisado.  Uma pequena e privilegiada parcela de pessoas de classe média e alta, quando flagrada em condutas previstas como crimes pela Nova Lei de                                                           1Psicólogo. Mestre e Doutor em Saúde Coletiva. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Vice-coordenador do GT Drogas e Sociedade da Associação Nacional de Pesquisa. Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Intervenção nas Políticas sobre Drogas (NUPID). Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ. São João del-Rei, Minas Gerais, Brasil. E-mail: mdvecchia@gmail.com ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-7537-3598  Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. Vecchia MD.                                                                 Notas sobre a conjuntura da política... Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                           299 Drogas, tem acesso a defensores que logram converter condenações em sanções administrativas ao comprometerem-se, por exemplo, com o tratamento em regime asilar em entidades do tipo comunidades terapêuticas (CTs). De modo condizente com as funções do Estado Penal, corolário do neoliberalismo em matéria de política social, uma abordagem diferenciada é dirigida para a parcela da população acima mencionada, objeto do racismo de Estado, contida nos cárceres.  O contexto de golpe parlamentar que depôs uma presidenta eleita pelo voto popular, por meio do recurso ao impeachment, impôs rupturas aos tímidos avanços que estavam em andamento para a reforma das políticas de drogas no Brasil, ainda que com vacilos e ambigüidades. Entendemos que seria pertinente atender ao convite do Journal Health NPEPS para escrever este Editorial com uma contribuição para a análise da conjuntura da política de drogas brasileira. Os complexos acontecimentos que temos vivenciado nos últimos três ou quatro anos impõem uma reflexão que contribua com a ampliação do entendimento acerca das suas consequências nas políticas públicas em nosso país, em particular no campo de álcool e outras drogas. A eleição de Jair Bolsonaro para a presidência, e os sinais que vêm sendo dados de ampliação do ajuste fiscal e manutenção da PEC da Morte, que estipula um teto ao já parco investimento público nas políticas sociais, ratifica a importância de nos prover de uma análise que possibilite projetar os desafios a serem enfrentados. Por mais que se aspire que uma análise de conjuntura esteja referida à totalidade abarcada pelo setor em análise, é forçoso reconhecer que sempre se estará aquém de uma capacidade de compreensão de tipo completa, em outras palavras, total. Isso implica em assumir, com a devida prudência e humildade, o caráter necessariamente precário e posicionado de toda análise de conjuntura, o que, apesar de um obstáculo, não deve ser impedimento à sua realização. Isto posto, tomaremos como base as quatro dimensões da saúde mental e atenção psicossocial propostas por Paulo Amarante (2012) como eixos para a realização dessa análise.  No que se refere à dimensão técnico-assistencial, a (não tão grande) novidade é a consolidação das CTs à brasileira na centralidade da oferta Vecchia MD.                                                                 Notas sobre a conjuntura da política... Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                           300 assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Ainda que tais entidades componham uma oferta com origem e características muito heterogêneas, como demonstrou o estudo recém-publicado pelo IPEA (2017), desde 2011 elas compõem a RAPS. Quando analisamos de maneira agregada o orçamento de custeio destinado a essas entidades e a todos os demais serviços da RAPS, nos últimos anos, a concentração de recursos destinados às CTs é extraordinária. Esse processo se acelerou na aurora do terceiro milênio e ganhou impulso com programas dos governos estaduais e federal, de orçamento polpudo, com ares salvacionistas, em resposta à famigerada “epidemia do crack”. O crescimento do financiamento público destinado às CTs tem sido progressivo, apesar das denúncias de desrespeito à orientação religiosa e à imposição da conversão como proposta de tratamento, dentre outras práticas violadoras dos direitos humanos.  Na assistência às pessoas que vivem problemas devido ao uso de álcool e outras drogas, a ampliação da fatia referente ao setor filantrópico e “conveniado” – ainda que a modalidade “convênio” não seja formalizada, repasses são recebidos regularmente em troca da oferta de serviços – deve ser considerada à luz de dois processos. Um deles é a crise crônica de financiamento do SUS e das políticas sociais como um todo, agravada com os cortes decorrentes da aplicação da PEC da Morte, que congelou o investimento público por 20 anos. As dificuldades de implantar e sustentar uma rede substitutiva qualificada pressiona os gestores a admitir o retorno de instituições com práticas manicomiais na oferta assistencial como resposta política ao uso problemático de álcool e outras drogas. O outro processo, de certo modo precondição para o anterior, é a arregimentação e organização de forças políticas em torno do financiamento das CTs com recursos públicos, onde se nota um crescimento do capital político de associações e federações representantes dessas entidades que, é forçoso reconhecer, têm vencido a disputa pelo fundo público, aprofundada pela crise fiscal de que sofre o Brasil.  Quanto à dimensão jurídico-política, há movimentos de avanço pontual com mudanças residuais em algumas pautas, convivendo com processos de reação muito marcantes e constantes no último período. A conquista de liminares para o cultivo caseiro de um número determinado de Vecchia MD.                                                                 Notas sobre a conjuntura da política... Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                           301 plantas de cannabis para a extração de óleo com fins medicinais é emblemática dos avanços, enquanto a desarticulação de programas alinhados às reformas nas políticas sobre drogas que estavam em andamento na SENAD evidenciam que tais avanços não ocorreram sem reações à altura. Por exemplo, em uma reunião atípica do Conselho Nacional de Políticas de Drogas (CONAD), realizada em um amplo salão com participação da imprensa, em março de 2018, o então Ministro do Desenvolvimento Social veio a público defender as internações involuntárias e se apresentar contra a descriminalização das drogas, sugerindo que os defensores das práticas de redução de danos – recomendadas e adotadas mundialmente - incentivam o consumo de drogas ilícitas. Nesse sentido, as políticas antidrogas têm dado o tom das ações governamentais. O argumento de que parcela significativa da população carioca apóia a operação militar de intervenção nos morros tem sustentado o discurso de lideranças políticas conservadoras sobre o suposto acerto da estratégia. Em uma afirmação emblemática, o Ministro da Justiça declarou ao Correio Braziliense que “não há guerra que não seja letal”. O aumento das mortes nos morros, com a crescente letalidade decorrente dessas operações, não parece minar sua continuidade. O Observatório da Intervenção (observatoriodaintervencao.com.br) aponta para dados no mínimo dramáticos: até o mês de agosto de 2018, após aproximadamente sete meses de intervenção, foram realizadas 440 operações, com 916 mortes decorrentes de ação policial e 55 agentes de segurança vitimados.  A gestão das secretarias estaduais de políticas sobre drogas em muitos estados brasileiros é alinhada com associações e federações de CTs e/ou entidades de caráter filantrópico e religioso - como há anos é, por exemplo, o caso mineiro. Vários estados brasileiros contam com programas específicos, com orçamento generoso, para o financiamento de CTs, habitualmente com baixa ou nenhuma acreditação, e uma tendência à redução de “entraves burocráticos” - em outras palavras, à burla das exigências da administração pública. De modo geral, as CTs têm acesso a fontes de recursos e subvenções oriundos das três esferas de governo, frequentemente cumulativos e sem o devido controle público. Vecchia MD.                                                                 Notas sobre a conjuntura da política... Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                           302 No tocante à dimensão sociocultural, parece haver um pequeno avanço com relação ao uso de cannabis, como se pode notar pelo crescimento e consolidação de organizações em torno da causa canábica e pelo plantio para o uso medicinal. Considerando-se a tradição histórica racista que permeia a proibição da cannabis em nosso país, não são mudanças insignificantes, ainda que de natureza incremental. As Marchas da Maconha espalharam-se pelo país e ocorrem em várias capitais. O caso da cidade de São Paulo é emblemático: a organização vem notando uma maior diversidade no público que participa das marchas, não se concentrando exclusivamente em jovens profissionais liberais e universitários de classe média, com a presença marcante das pautas sociais em torno da proibição. Por outro lado, o conservadorismo na comunicação de massa (informação, prevenção e educação) permanece saliente. Os projetos que investem em estratégias de comunicação de massa têm dificuldades para se sustentar diante da instabilidade de financiamento, carecendo de um maior reconhecimento público e profissionalização.  Finalmente, com relação à dimensão teórico-conceitual, certas tendências da pesquisa e da produção científica têm se manifestado no campo de álcool e outras drogas. A retração do financiamento para a área de ciência e tecnologia nos últimos anos tem inegáveis impactos, que somente poderão ser apreciados em um futuro breve. No entanto, destacaríamos, nesta oportunidade, três áreas emergentes da produção de conhecimento em nível nacional e internacional: (a) os estudos sobre as consequências das políticas de legalização e regulação do uso recreativo e/ou medicinal da cannabis, que se dedicam a avaliar, por exemplo, os impactos de tais políticas na conformação da indústria da cannabis bem como suas consequências na violência associada ao narcotráfico; (b) os estudos que se concentram nas estratégias de tratamento e redução de danos associados ao uso de opioides, adicionando o problema dos painkillers nos EUA à abordagem dos problemas mais conhecidos como o uso injetável, as intercorrências com sobredoses etc., e (c) os estudos sobre terapias assistidas por psicodélicos, com relevante protagonismo brasileiro no que se refere ao uso da ayahuasca no tratamento da depressão e do alcoolismo, mas também recorrendo a outras substâncias Vecchia MD.                                                                 Notas sobre a conjuntura da política... Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                           303 psicoativas como MDMA, ibogaína, ácido lisérgico etc., que têm se mostrado promissoras no tratamento de várias condições, mas sofrem dificuldades marcantes para sua disponibilidade para fins de pesquisa devido à vigência do marco proibicionista internacional.  Os avanços na reforma das políticas de drogas são ainda tímidos, e não há muito que comemorar na conjuntura brasileira recente. É preciso registrar, porém, que há movimentos de organização política e institucional daqueles ocupados com as reformas, uma via importante para aprofundar o entendimento da conjuntura e qualificar a ação política, em face do conservadorismo vigente em matéria de políticas de drogas: Rede Latino-Americana e do Caribe de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD), Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), Coletivo Intercambiantes Brasil, Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas etc. Que bons (e melhores) ventos soprem na direção da reforma das políticas de drogas em nosso país!  REFERÊNCIAS  1. Amarante P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.  2. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia. Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: IPEA; 2017.    Como citar este artigo: Vecchia MD. Notas sobre a conjuntura da política de drogas no Brasil. Journal Health NPEPS. 2018 jul-dez; 3(2):298-303.                                           

Notas sobre a conjuntura da política de drogas no Brasil

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