Andrea Schellino

Remate de Males

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 Campinas-SP, (37.1): pp. 481-486, Jan./Jun. 2017Uma carta inédita de Baudelaire a Charles Asselineau [?], 9 de maio de 1853Andrea SchellinoUma carta inédita de Baudelaire foi posta à venda em Paris, dia 12 de dezembro de 2016, no Hotel Ambassador. Eis o texto, estabelecido conforme o fac-símile publicado no catálogo Lettres (2016, pp. 6-7):Versalhes, segunda-feira, 9 de maio de 1853.Meu caro amigo, Eu reclamo a cortesia que voce ̂ me ofereceu. Boyer não retornou ontem à noite; – percebi que há hoje CONFERÊNCIA NO ATHÉNÉE, e Amanhã PRELEÇÃO NO ATHÉNÉE; é alarmante. Boyer me lembra aquelas mulheres que estão menstruadas todos os dias, e das quais não se pode jamais apalpar o rabo. No caso dele, agora tem o Athéne ́e todos os dias. – Tenho certeza de que não há dinheiro para mim na Dama com papel timbrado, mas sei que minha mãe está em Paris, e que deseja ver-me dia 10, Amanhã. – Seria muito amável de sua parte voce ̂ mesmo vir, mas, em todo caso, você̂ sabe que não se pode enviar um título de menos de cinco francos. Todo seu e mil perdões,Ch. BaudelaireEnfim, este incompreensível gracejo vai Finalmente acabar.De infinito a infinito: Carrera, Aira, Rosa ¹ –  482Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 1, pp. 479-484, jan./jun. 2017Essa carta, que tinha pertencido ao bibliófilo e historiador Alfred Bégis, já havia sido posta à venda pública no hotel Drouot, em maio de 1910, mas os peritos haviam julgado o conteúdo por demais licencioso para publicá-la: “Carta curiosa, curiosa demais, dirigida a um amigo, e que não poderíamos publicar em sua integralidade” (CATALOGUES, 1910, [s.p.]).1 Em sua edição da Correspondance de Baudelaire (1973, CPl I, p. 224), Claude Pichois, que assinala a existência dessa carta, emite a hipótese de que Charles Asselineau seja o destinatário. Nascido em Cahors em 1829, Philoxène Boyer havia conquistado a simpatia e estima de algumas celebridades literárias parisienses, dentre 1 “Lettre curieuse, trop curieuse, adressée à un ami, et qu’on ne pourrait imprimer en entier”. De infinito a infinito: Carrera, Aira, Rosa ¹ –  483Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 1, pp. 479-484, jan./jun. 2017elas Nerval, Hugo e Gautier. Escritor e conversador muito fecundo, havia se relacionado com Baudelaire bem no início dos anos cinquenta. Acabava, em alguns meses, de dilapidar a herança materna e de adquirir uma reputação de prodigalidade. Boyer tinha disposto de seus meios a serviço de sua paixão de orador (PICHOIS, 2005, p. 381).Na primavera de 1853, Boyer, conferencista impenitente, proferiu conferências no Athénée National de Paris, no local inaugurado um ano antes na praça Vendôme, nº 12. Um público de associados assistia aulas sobre diversos assuntos científicos ou literários, e frequentava a biblioteca conexa a esse Athénée, na rua de Valois, nº 8. No dia 20 de abril, uma centena de pessoas assistiram à primeira conferência de Boyer sobre as Memórias de além-túmulo. Nos dias 21 e 22 de abril (CPl I, pp. 220-221), Baudelaire apressou-se em convidar seus amigos em comum, Champfleury e Maxime Du Camp, para a próxima leitura. Alguns dias depois, os jornais saudaram o evento. Dia 25 de abril, Gautier, nas colunas do La Presse, louvou a eloquência do conferencista:O Sr. Philoxène Boyer comenta no Athénée, perante um auditório numeroso, as Memórias de Chateaubriand que tomou como texto para improvisações panorâmicas, repletas de engenhosas relações, percepções inesperadas, considerações estéticas e morais do mais alto interesse. A análise dessa magnífica obra é como o ponto de partida de um curso de literatura moderna que ninguém além do Sr. Philoxène Boyer, poeta e erudito, seria capaz de ministrar (GAUTIER, 1853, p. 2).Ao agradecer Gautier pelo seu apoio, Philoxène Boyer lhe anuncia que tem a intenção de falar, na sua próxima preleção, “da América, de Washington e, melhor ainda, de Charlotte Ives, Bettina, Graziella, Modeste Mignon”2 (GAUTIER, 1991, p. 178).Mas o que faziam Baudelaire e Boyer em Versalhes, no final de abril ou início de maio de 1853? Em memórias recolhidas em 1906 por Jacques Crépet, Asselineau (1906, pp. 294-295) contou o seguinte episódio: No tempo do despotismo de Philoxène, Baudelaire não foi menos poupado do que outros: nunca fiquei tão surpreso como ao ver aquela natureza tão rígida, tão contundente, quase sempre independente até a ferocidade, ceder perante um conversador cuja força toda residia em sua língua e nervos. Baudelaire acabou aterrorizado: “cruel pequeno lírico” (era o nome que dava a Philoxène). “Infame pequeno lírico!” Ao entrar na minha casa ele perguntava: “O Sr. Boyer está?”. E mais de uma vez se esquivou para não ter que suportar sua presença. Philoxène fez mais do que atordoá-lo com sua tagarelice. Uma vez ele o reteve 2 Carta de Philoxène Boyer a Gautier[, aproximadamente 25 de abril de 1853].De infinito a infinito: Carrera, Aira, Rosa ¹ –  484Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 1, pp. 479-484, jan./jun. 2017durante um mês em Versalhes, num albergue onde tinham conseguido crédito, partindo sempre para ir buscar dinheiro em Paris, e nunca trazendo um centavo de volta. Guardei duas ou três cartas lamentáveis que Baudelaire escreveu naquela ocasião, rogando-me por libertá-lo.3Segundo Henri Girard (1921),4 Baudelaire e Philoxène Boyer tinham previsto visitar Émile Deschamps, que morava em Versalhes. No dia seguinte de sua visita a Deschamps, os dois escritores teriam se perdido no bosque de Versalhes, antes de se instalarem em um confortável hotel da cidade. Logo teriam percebido que não tinham como pagar a conta.Para apoiar sua história, Henri Girard publicava uma carta de Boyer a Émile Deschamps:Caro Mestre,Eis um acidente que ocorreu ao meu amigo Baudelaire e eu. Nós nos deixamos levar pelo grande charme melancólico de Versalhes, que para nós sua poesia duplicou mais de uma vez, e que sua hospitalidade há pouco engrandecia.Tendo partido para um passeio de algumas horas, aqui estamos ao final de nosso segundo dia de ausência. Parecemos um capítulo de Gil Blas – e em todos os aspectos. Isso explica que recorramos sem pudor à sua benevolência, que jamais falhou com ninguém, – que estamos em um hotel onde não sabemos como saldar nossas pequenas despesas – que somos forçados a passar novamente a noite em sua boa cidade... e que no final das contas ficaríamos mais do que agradecidos se pudesse enviar por portador algum dinheiro – o suficiente para nos livrar da situação. – Depois de amanhã, o dinheiro lhe será devolvido e eu juntarei ao envio minhas últimas pequenas obras. Mas o que não devolverei, é a minha gratidão e minha devoção que preservo apenas para mim e para sempre. Philoxène Boyer (GIRARD, 1921, p. 520).Dia 1º de setembro de 1924, no Le Journal, Émile Geidan deu uma versão diferente desse episódio versalhês. Baudelaire e Boyer teriam planejado ir até Versalhes para “elaborar uma história de Luis XIV, tomando como base de [seu] trabalho, a vida e os atos dos diferentes personagens cujos retratos ilustram as galerias do castelo” (GEIDAN, 1924, p. 4). Hospedados em um hotel de Versalhes, Baudelaire e Boyer teriam rapidamente esgotado seus recursos e teriam sido obrigados a deixar suas bagagens em garantia. Baudelaire teria então se refugiado em uma casa de passe, aguardando receber o dinheiro necessário para pagar suas dívidas. 3 Reedição em Crepet & Pichois (1953, pp. 186-187).4 Henri Girard (1921; reimpr. 1977, p. 519). Ele situa equivocadamente o episódio em 1860. Ver também Sylvain-Christian David (1987, p. 173). De infinito a infinito: Carrera, Aira, Rosa ¹ –  485Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 1, pp. 479-484, jan./jun. 2017Quinze dias depois de sua partida para Versalhes, Boyer volta a Paris. Ele suplica a Émile Geidan e seus amigos que lhe concedam algum recurso financeiro para pagar sua conta de hotel, recuperar suas bagagens e liberar Baudelaire, retido no bordel. O desfecho dessa peripécia é contado por Geidan (1924, p. 4):Philo partiu. Nossa surpresa foi extrema quando vimo-lo, três dias depois, reaparecer. – Eu retornei a Versalhes, confiou-nos, levando uma quantia insuficiente. Mal recebido por Baudelaire, este me diz: “Fique aqui, estarei de volta de noite”. Ora, ele não reapareceu mais, e meus anfitriões me botaram na rua como um criminoso. Cheguei de Versalhes a pé, extenuado e morrendo de fome.Conforme uma carta à Sra. Aupick, do dia 14 de maio de 1853, Baudelaire pôde finalmente deixar Versalhes dia 11 (CPl I, p. 226).5Aquele dia conturbado foi, para o poeta, fecundo. É de Versalhes que Baudelaire, dia 3 de maio, envia Reversibilidade à Mme Sabatier e, dia 9 de maio, Confissão; e é também de lá que lhe endereça A aurora espiritual,6 alguns dias depois, “after a night of pleasure and desolation” (CPl I, p. 224), ocorrida numa casa de passe de Versalhes.Tradução de Gilles Jean AbesRevisão de Eduardo VerasREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSELINEAU, Charles. Recueil d’anecdotes. In: CREPET, Jacques (ed.). Charles Baudelaire. Étude biographique d’Eugène Crépet, suivie des Baudelairiana d’Asselineau. Paris: A. Messein, 1906.BAUDELAIRE, Charles. Correspondance. 2v. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade)BAUDELAIRE, Charles. Lettres à sa mère. Correspondance établie, présentée et annotée par Catherine Delons. Paris: Manucius, 2017.5 Foi Catherine Delons, em sua recente edição das cartas de Baudelaire à Mme Aupick, quem estabeleceu que essa carta não foi enviada de Versalhes, mas de Paris (BAUDELAIRE, 2017, p. 124).6 Trata-se da hipótese de Jean-François Delesalle (1969, p. 11).De infinito a infinito: Carrera, Aira, Rosa ¹ –  486Remate de Males, Campinas-SP, v. 37, n. 1, pp. 479-484, jan./jun. 2017CATALOGUE DE la bibliothèque de feu M. Alfred Bégis, terceira parte, nº 1.334. Paris, Hôtel Drouot. Peritos: Émile Paul et fils e Guillemin. 27 de maio de 1910.CREPET, Jacques & PICHOIS, Claude (orgs.). Baudelaire et Asselineau (edition critique). Paris: Nizet, 1953.DELESALLE, Jean-François. La trace de quelques documents baudelairiens. Bulletin baudelairien, v. IV, nº 2, 9 avr. 1969, pp. 7-12.GAUTIER, Théophile. Théâtres. La Presse, Feuilleton, 25 de abril de 1853, pp. 1-2. GAUTIER, Théophile. Correspondance générale, t. V. Éditée par Claudine Lacoste-Veysseyre, sous la direction de Pierre Laubriet. Genève: Droz, 1991, p. 178.GEIDAN, Émile. Vieux souvenirs d’un étudiant de 1852. Baudelaire. Murger, Banville, Philoxène Boyer. Le Journal, Le Magazine Littéraire, 1º sept. 1924, p. 4. GIRARD, Henri. Un bourgeois dilettante à l’époque romantique, Émile Deschamps 1791-1871. Paris: Édouard Champion, 1921.GIRARD, Henri. Un bourgeois dilettante à l’époque romantique, Émile Deschamps 1791-1871. Genève: Slatkine Reprints, 1977. LETTRES ET manuscrits autographes, nº 16. Paris, Hôtel Ambassador, Salon Mogador, Maison de ventes aux enchères Alde. Perito: Thierry Bodin. 12 de dezembro de 2016, pp. 6-7.PICHOIS, Claude & ZIEGLER, Jean (1987). Charles Baudelaire. Paris: Fayard, 2005.DAVID, Sylvain-Christian. Philoxène Boyer. Un sale ami de Baudelaire. Paris: Ramsay, 1987.

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