Entre 1961 e 1974 Portugal combateu uma guerra em África. Quarenta anos após a
revolução que depôs o regime, já não existe a nação pluricontinental em nome da qual
foram enviados para África mais de 800 mil homens. Esta guerra, que nunca foi
oficialmente declarada, sobrevive ainda na memória daqueles que nela participaram.
O objetivo desta dissertação é contribuir para a compreensão do processo através do
qual a memória conta a guerra colonial no presente. Impossível que é reproduzir
fielmente o momento vivido, o conhecimento do passado resulta da produção de
aproximações imperfeitas daquilo que já não existe. A memória não é estanque e
imutável, nem tampouco irredutivelmente individual. Ela é recriada e atualizada pelo
olhar retrospectivo de agentes – individuais ou coletivos - que a cada momento
conferem inteligibilidade ao passado através da negociação do modo pelo qual ele pode
ser formulado. Ao combinar de uma forma singular o mundo privado da recordação
pessoal e o mundo público da memória social, a memória de guerra constitui um locus
privilegiado para a análise do processo pelo qual as experiências pessoais são
interrogadas e inscritas em narrativas públicas mais vastas.
Partindo da comissão de serviço de uma unidade do Exército português em Angola
entre 1971 e 1973, construiu-se uma etnografia da memória de guerra que articula
diversos lugares e momentos do tempo e que cruza as várias escalas em que memória
vive. As memórias pessoais dos antigos militares desta companhia de artilharia foram
confrontadas com outras narrativas sobre o mesmo fragmento da guerra colonial (o
relato institucional militar, a narrativa literária de António Lobo Antunes, antigo alferes
médico da unidade) e com as retóricas públicas que, durante o Estado Novo e no
Portugal contemporâneo, forneceram as ideias e as palavras com as quais o país e o
mundo eram pensados.
Foi nesta viagem entre tempos e escalas diversas que se procurou compreender a
memória de guerra, construção compósita que articula a dimensão pessoal da
subjetividade individual com a dimensão social das narrativas públicas que desenham
os limites no interior dos quais a guerra, o colonialismo, a nação, o passado e o presente
podem ser imaginados