Silva, Celina

Portuguese

Repositório Aberto da Universidade do Porto

Celina Silva* WP/CEAUP/#2022/1           Recensão crítica -Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021.          * FLUP   2  ©CEAUP| Celina Silva, Recensão crítica -Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021| WP/CEAUP#2022/1  Com Diário do Medo, publicado em Novembro de 2021 simultaneamente em Pontevedra e Curitiba pela editora Uratau, mas distribuído nessa ocasião em Portugal onde foi apresentado por Rui Zink, João Melo retoma o revisto poético com que iniciou a sua considerável produção literária, da qual constam ainda contos e crónicas, e jornalística. Registo suspenso na circulação editorial deste autor desde 2007, a presente obra constituída de 71 poemas breves, acrescidos da tradução do texto em memória de Luis Sepulveda da autoria da viúva do mesmo, combina na sua estruturação, segundo a nota paratextual introdutória do próprio João Melo, textos (os 7 primeiros) destinados a um livro parcialmente escrito em meados dos anos 10 do nosso século, porém perdido como totalidade, com os restantes produzidos durante 2020 em plena pandemia.  Às vitimas desta, com referência particular ao citado escritor, nomeadas ou não ao longo da obra, bem como de outros flagelos (violência, discriminação de qualquer tipo, assassinato) se dedica o presente livro. Uma tal génese, distinta e dual apenas em tempos circunscritos e circunstanciados de escrita, materializa uma textualidade essencialmente lírica coerente na sequência dos textos através das temáticas maiores, confessional/testemonial, de vincado compromisso com a História/ história do ser humano na sua individualidade e na sua universalidade. O processo de produção poética, assume-se assim enquanto catarse e, em simultâneo, ato de resistência e demonstração de lúcida resiliência, como menciona o autor quer ao nível paratextual (na Nota do Autor e em entrevistas) quer expressamente ao nível textual. Convocando a factualidade passada ou presente da condição existencial do ser humano, Diário do Medo patenteia afetos (amor, amizade, fraternidade) e desafetos (ódio, raiva, revolta) vincados por uma nítida consciência social e política, denunciando opressão e violência contra indivíduos, populações e culturas, no passado e no presente, bem como a impunidade de que gozam de modo mais ou menos evidente, fator decisivo para a permanência- perpetuação da mesma. O medo, a morte, o ódio, o sofrimento, que perpassam a obra, configurados na sua complexidade e ambivalência enquanto entidades “monstruosas”, surgem desmistificadas através do evidênciar do absurdo alienante dos discursos historico-politicos, tão ancestrais quão atuais, que os veiculam, alimentam e (pseudo)neutralizam, 3  ©CEAUP| Celina Silva, Recensão crítica -Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021| WP/CEAUP#2022/1   demonstrando-se a imperativa necessidade da respetiva aniquilação mediante a tomada da palavra-ação. Pandemia, racismo, exclusão, escravatura, colonização, colonialismo, opressão, injustiça e respetiva banalização, nomeadamente pela parte dos media, são derrotados pela vida, o amor, a solidariedade, a luta, a memória, a justiça, a esperança e a liberdade. Com efeito, subjacente a tais características está patente, como instância orquestrante, a consciência- fruição da palavra instauradora do conhecimento de si e do outro(s), do diálogo vivificante, do clamor, da revolta e da transformação libertadora, ou seja da Poesia; entidade “salvadora” como na citada Nota do Autor se proclama, na medida em que exprime, compartilhando-os,  ou antes tornando-os partilháveis, quer o visível quer o vivenciado, que apesar de o ser, nunca se abarca de modo pleno. No recente livro de João Melo, a dimensão metatextual é claramente corporizada através da vigência marcada do cunho inquiritivo-reivindicativo acerca do poder da palavra para dar conta da condição humana como totalidade cognoscitiva, sensível e imaginativa bem como da respetiva ambivalência, plasticidade e teor criativo, fundacional. Por intermédio da citação da(s) voz(es) do outro(s) (frequentemente grafadas em itálico), solidário ou opressor, ou mediante uma formulação irónica se desestabilizam a pseudo literalidade e linearidade da palavra “oficial”, do discurso monodológico ou, que como tal se auto-institui.  Essa reescrita- reposicionamento da linguagem no seu teor plural, metamórfico e polifacético desencadeia a imperativa releitura dos discursos, vários e diversos, que ela instaura e suporta; História e Ideologia entre outros.  As questões identitárias (individuais, nacionais, internacionais, globais) são focadas com particular ênfase para a relação fraternal íntima entre Brasil e Africa, (Angola em certos momentos) radicadas num comum, porém distinto, processo de colonização onde o papel da africanidade está longo de ser devidamente equacionado.  A mero título de exemplo veja-se o primeiro poema, ”Crónica  Verdadeira da Língua Portuguesa”,  história outra, poética-perfeita, da língua portuguesa, no qual a epígrafe de Luandino Vieira, reescrita-citada no epílogo é o fio condutor do diálogo-resposta, antítese possibilitadora da síntese, ao poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, reivindicando-se o silenciado papel da contribuição do povo e da cultura 4  ©CEAUP| Celina Silva, Recensão crítica -Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021| WP/CEAUP#2022/1   africanas na libertação da referida língua de estruturas tanto do foro linguístico quanto do sócio-político, condição necessária para a tornar transnacional, comum-comunitária; isto é lusófona. Ou essa “auto história literária” sui generis, evocadora do papel crucial desempenhado pela leitura da “Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa” na emergência do próprio autor enquanto poeta angolano consciente da sua circunstancialidade complexa do ponto de vista cultural, histórico e político. Mas também nos poemas em que se dá conta, via interrogação ou afirmação contundente, do papel fundacional da palavra em registo-funcionamento literário e da dificuldade em dizer o que como indizível se apresenta. Diário do Medo reescreve pela leitura criativa, irónica, crítica, amplificante ou dijuntiva, textos literários, formas canónicas e géneros poéticos e não poéticos, nomeadamente os históricos e políticos típicos da cultura logocêntrica, focando as dimensões marginalizadas da cultura e povos africanos, os vários marginalizados e excluídos ao longo do processo histórico a quem dá voz e, por tal procedimento, dimensão heróica ora individualizando-os ora universalizando-os. Relativamente ao tratamento do medo neste livro, os termos “sublimação” e “superação” foram apontados por Debora Rendelli, simultaneamente coeditora e autora do paratexto constando nas badanas bem como pelo próprio escritor em entrevista; com efeito na presente obra o medo e seu(s)poder(es), efeito(s) e coadjuvante(s) são desmascarados por um discurso-postura literal e metaforicamente subversia, corroendo-os. Da consciência do medo surge, via da Poesia, autêntica palavra nunca “vã”, o combate-afrontamento e, como tal, se vislumbra a derrota do mesmo, dada a possibilidade declarada de o tornar inoperante.   Celina Silva, Universidade do Porto Texto aceite para publicação em 10-12-21 e publicado em 10-1-22       

Recensão crítica - Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021.

https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/139205/2/525441.pdf

Recensão crítica - Diário do Medo de João Melo, Editora Uratau, Pontevedra e Curitiba, 2021.

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