Tese de mestrado, Psicologia (Secção de Psicologia Clínica e da Saúde, Núcleo de Psicoterapia Cognitiva-Comportamental e Integrativa), Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia, 2017Auditory verbal hallucinations (AVH) are a core symptom of psychotic
disorders such as schizophrenia, although similar experiences have been widely
reported in nonclinical samples. Due to these observations, a dimensional approach to
the understanding of these symptoms has been in discussion: the continuum model of
psychosis. One of its assumptions is that the experiences observed in both clinical and
nonclinical groups rely on similar cognitive and neural mechanisms. For example,
psychotic patients reveal impairments in the recognition of their own speech, often
attributing it to an external source, particularly when it carries negative content. This
could also be the case in nonclinical samples experiencing hallucinations, although
more studies probing voice perception in these individuals are needed, to assess the
existence of similar impairments. We recruited nonclinical participants with different
scores on the Launay-Slade Hallucination Scale-Revised. They pre-recorded words and
vocalizations that were subsequently used in a set of tasks. We assessed voice identity
processing at both the discrimination and recognition levels, while taking into account
the interactions between the three main voice dimensions: speech, identity, and emotion
(Experiment 1). We also wanted to explore if these potential differences could be
related to differences in the emotional evaluation of the voice stimuli (Experiment 2).
Our results suggest that hallucinatory predisposition is associated with differences in the
voice recognition processes: there was an association between lower performance in
recognizing one’s own speech and a higher predisposition for auditory hallucinations,
particularly when listening to vocalizations not carrying semantic content. We did not
find an association between these impairments and negative emotional content of the
auditory stimuli, as observed in previous studies with patients. However, our study
suggests that the processes involved in the recognition of self-produced vocal stimuli
could underlie the experience of auditory hallucinations in nonclinical individuals.Nos últimos anos, tem surgido um interesse cada vez maior no estudo de
manifestações sintomáticas observadas em camadas não-clínicas da população (e.g.,
Broyd et al., 2016; Powers, Kelley, & Corlett, 2016). Este tipo de sintomas ou
experiências, cuja descrição surge habitualmente ligada a perturbações diagnosticáveis,
nem sempre estão associados a um mal-estar significativo nos indivíduos ou a uma
necessidade de ajuda psicoterapêutica ou psiquiátrica (e.g., Daalman, Diederen,
Hoekema, Lutterveld, & Sommer, 2016). Assim, ainda não é claro se estas
manifestações – ou quais delas – estão associadas a fases mais precoces de uma
perturbação, ou constituem simplesmente traços ou estados dos indivíduos sem um risco
clínico (e.g., Johns et al., 2014; Yung et al., 2009). A progressão sintomática varia
fortemente de indivíduo para indivíduo, e isto tem levado ao surgimento de novas
abordagens dimensionais que possam alargar o estudo da psicopatologia além das
categorias já existentes, contribuindo assim para a exploração da emergência
transdiagnóstica dos sintomas (e.g., Nelson, McGorry, Wichers, Wigman, & Hartmann,
2017; iniciativa RDoC em Yee, Javitt, & Miller, 2015).
As perturbações psicóticas têm sido um foco deste tipo de abordagens mais
dimensionais, uma vez que experiências habitualmente associadas a perturbações como
a esquizofrenia – por exemplo, experiências anómalas na perceção de voz, similares a
alucinações auditivas – têm vindo a ser observadas na população em geral, muitas vezes
sem mal-estar associado (e.g., Strauss, 1969; van Os, 2003; Yung et al., 2009). Uma
destas abordagens, que tem sido sujeita a uma vasta discussão na literatura científica, é
o modelo do contínuo das experiências psicóticas (e.g., Badcock & Hugdahl, 2012; van
Os, Linscott, Myin-Germeys, Delespaul, & Krabbendam, 2009). Este modelo sugere
que a experiência deste tipo de sintomas se distribui ao longo de um contínuo entre o
funcionamento saudável e o funcionamento psicopatológico, não estando
necessariamente associada à presença de perturbação (van Os et al., 2009). Além disso,
o modelo sugere também que os sintomas das populações clínica e não-clínica poderão
ter subjacentes os mesmos mecanismos cognitivos e neurológicos (Badcock & Hugdahl,
2012). Contudo, são necessários mais estudos que ajudem a esclarecer se estamos a
discutir o mesmo tipo de experiências, com as mesmas origens, nestas diferentes
camadas da população.
Um dos sintomas comuns em perturbações psicóticas, como a esquizofrenia, que
tem sido reportado em indivíduos sem perturbação são as alucinações auditivas verbais
(e.g., Daalman et al., 2011; Sommer et al., 2010). Vulgarmente descritas como “ouvir
vozes”, estas experiências ocorrem sem qualquer estimulação externa (American
Psychiatric Association, 2013). Embora existam vários modelos explicativos para a sua
origem, um dos mais relevantes é o que associa estas experiências a anomalias no
processamento da voz, particularmente da voz do próprio indivíduo (ver Conde,
Gonçalves, & Pinheiro, 2016a para uma revisão). Estudos com pacientes com
esquizofrenia, e que sofrem de alucinações auditivas, têm revelado que estes têm maior
dificuldade em reconhecer a sua própria voz quando ouvem excertos auditivos da
mesma, muitas vezes atribuindo-a a uma fonte externa (e.g., Allen et al., 2004; Johns et
al., 2001). Este viés externalizante parece ainda acentuar-se com a severidade das
alucinações destes pacientes, bem como quando o conteúdo dos excertos ouvidos é
negativo ou injurioso (Pinheiro, Rezaii, Rauber, & Niznikiewicz, 2016). Este é um
exemplo do tipo de anomalias de perceção de voz que requer estudos com amostras nãoclínicas
que reportem experiências alucinatórias semelhantes. É importante averiguar a
existência do mesmo tipo de alterações no processamento da voz destes sujeitos, de
forma a perceber se os mesmos mecanismos cognitivos e neurológicos lhes estão
subjacentes.
Ao estudar perceção de voz, devem ser tidos em conta não só diferentes níveis
de processamento, como também os diferentes tipos de informação contida nos
estímulos vocais (e.g., Belin, Fecteau, & Bédard, 2004; van Lancker & Kreiman, 1987).
Vários estudos com pacientes que sofreram lesões cerebrais sugerem que a
discriminação e o reconhecimento da identidade da voz podem ser vistos como dois
níveis de processamento distintos, podendo ser estudados em separado (e.g., van
Lancker & Kreiman, 1987; van Lancker, Kreiman & Cummings, 1989). A
discriminação de voz é maioritariamente feita com recurso às propriedades acústicas
dos estímulos vocais (processos mais bottom-up; e.g., Chhabra, Badcock, Maybery, &
Leung, 2014), enquanto que o reconhecimento envolve a integração de informação
específica sobre a identidade de quem produziu esses estímulos vocais, recrutando mais
recursos atencionais (processos mais top-down; e.g., Conde, Gonçalves, & Pinheiro,
2015; Sohoglu, Peelle, Carlyon, & Davis, 2012). No processamento da voz estão ainda
envolvidos diferentes tipos de informação linguística e paralinguística, que dizem
respeito ao discurso/conteúdo semântico, à identidade, e à emocionalidade (e.g., Belin et
al., 2004; Schirmer & Adolphs, 2017). O nosso estudo teve em conta todos estes
aspetos, estudando a perceção de voz de uma amostra não-clínica e composta por
participantes com níveis variados de predisposição para experiências alucinatórias.
Neste estudo participaram 32 indivíduos recrutados através das suas pontuações
(baixas, intermédias e altas) na Escala de Alucinações de Launay-Slade Revista
(adaptação portuguesa de Castiajo & Pinheiro, 2017; Larøi & van der Linden, 2005;
originalmente desenvolvida por Launay & Slade, 1981). Este é um instrumento que tem
sido usado previamente em estudos sobre a prevalência de experiências alucinatórias
nas populações clínica e não-clínica (e.g., Morrison et al., 2000; Serper, Dill, Chang,
Kot, & Elliot, 2005). Numa primeira sessão, os participantes gravaram excertos da sua
própria voz, que envolviam tanto palavras como vocalizações. Mais tarde, numa
segunda sessão, os participantes realizaram duas experiências comportamentais com
recurso a um computador. Na Experiência 1, foi pedido aos participantes que
discriminassem ou reconhecessem a identidade de excertos de voz, que incluíam a sua
própria voz e a voz de uma outra pessoa desconhecida. Nesta experiência, os
julgamentos eram feitos explicitamente sobre a identidade dos estímulos, com as
dimensões do discurso/conteúdo semântico e da emocionalidade dos estímulos a serem
analisadas de forma implícita. Na Experiência 2, foi pedido aos participantes que
avaliassem as propriedades emocionais dos estímulos apresentados. Nesta experiência,
os julgamentos eram feitos explicitamente sobre as propriedades emocionais dos
estímulos, com as dimensões do discurso/conteúdo semântico e da identidade dos
estímulos a serem analisadas de forma implícita.
No que diz respeito à primeira experiência (foco na identidade dos estímulos), os
nossos resultados apontam para diferenças nos processos de discriminação e
reconhecimento da identidade da voz, relacionadas com os diferentes tipos de
informação contida nos estímulos vocais. Na discriminação, os participantes
apresentaram melhor desempenho quando ouviam palavras, do que quando ouviam
vocalizações. Também apresentaram melhor desempenho quando os estímulos vocais
envolviam a sua própria voz e quando envolviam conteúdo positivo. Estas diferenças
não foram influenciadas pela variabilidade individual na predisposição para
experiências alucinatórias. Contudo, foram também encontradas diferenças nos
processos de reconhecimento da identidade da voz, essas sim influenciadas pela
variabilidade na predisposição para experiências alucinatórias da nossa amostra. Uma
análise de correlações subsequente revelou que, quanto maior a predisposição para
alucinações – particularmente, alucinações auditivas –, pior o desempenho no
reconhecimento de vocalizações positivas e produzidas pelo próprio indivíduo.
Finalmente, no que diz respeito à segunda experiência (foco nas propriedades
emocionais dos estímulos), os nossos resultados sugerem que existe uma tendência para
avaliar de forma mais extrema (mais positiva ou mais negativa) vocalizações que
envolvem a voz do próprio. Estas diferenças nos julgamentos dos participantes não
foram, contudo, influenciadas pela variabilidade individual na predisposição para
experiências alucinatórias.
Em suma, os nossos resultados têm implicações importantes para a discussão do
modelo do contínuo das experiências psicóticas (e.g., Badcock & Hugdahl, 2012; van
Os et al., 2009), particularmente no que diz respeito ao reconhecimento da identidade da
voz e ao conteúdo semântico ou não dos estímulos. Os resultados apontam para uma
associação entre o pior desempenho no reconhecimento de estímulos vocais produzidos
pelo próprio – particularmente vocalizações, sem conteúdo semântico – e uma maior
predisposição para alucinações. Isto vai ao encontro da observação prévia de défices nos
processos de reconhecimento em pacientes psicóticos (e.g., Allen et al., 2004; Johns et
al., 2001) e sugere que o reconhecimento da identidade da voz poderá ser um
mecanismo subjacente tanto em grupos clínicos, como não-clínicos, que experienciam
alucinações auditivas. Contudo, não foi encontrada uma associação entre a
predisposição para experiências alucinatórias e um pior reconhecimento de estímulos
com emocionalidade negativa, algo que foi previamente observado em estudos com
pacientes (Pinheiro et al., 2016). Ainda assim, isto está também em linha com evidência
prévia que sugere que a experiência de alucinações auditivas poderá estar mais
relacionada com o processamento das dimensões da identidade e do discurso/conteúdo
semântico, do que com o processamento da emocionalidade (ver Conde et al., 2016a
para uma revisão)