Este dossiê reúne uma série de artigos voltados para questões referentes às violências de gênero, que foram submetidos à Revista Feminismos no último ano, de forma independente, ou seja, sem uma chamada específica de trabalhos.  Mas calhou de cada um trazer à baila uma diferente faceta dessas violências, que precisam ser visualizadas, discutidas e combatidas, razão pela qual fomos motivadas a organizar este dossiê

Sardenberg, Cecília Maria Bacellar

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     111 Vol 8, N.2, Maio. – Agosto,  2020 • www.feminismos.neim.ufba.br • ISSN: 2317-2932  APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ: AS MÚLTIPLAS FACETAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL  Cecilia M. B. Sardenberg1  Este dossiê reúne uma série de artigos voltados para questões referentes às violências de gênero, que foram submetidos à Revista Feminismos no último ano, de forma independente, ou seja, sem uma chamada específica de trabalhos.  Mas calhou de cada um trazer à baila uma diferente faceta dessas violências, que precisam ser visualizadas, discutidas e combatidas, razão pela qual fomos motivadas a organizar este dossiê. Entende-se por “violência de gênero”,  toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995). O que quer dizer que  tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência sexual, podem ser alvos da violência de gênero. Todavia, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres, as meninas e  as populações de LGBTTQI’s, - lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, queers e indeterminados -  que se veem mais comumente na situação de objetos/vítimas desse tipo de violência (SARDENBERG, 2018).                                                            1 Professora Titular de Antropologia (aposentada) credenciada como Professora Permanente de Teoria Feminista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos - PPGNEIM, da Universidade Federal da Bahia- UFBA, tendo atuado também como Professora Permanente credenciada nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Pós-Graduação em Ciências Sociais. Obteve o Bacharelado em Antropologia na Illinois State University (1977), Mestrado em Antropologia na Boston University (1981), Doutorado em Antropologia, Boston University (1997) e Estágio Pós-Doutoral como Visiting Fellow no Institute of Development Studies (IDS), University of Sussex, Inglaterra (2003; 2005; 2013 A violência de gênero contra mulheres é produto da ordem de gênero patriarcal que objetifica as mulheres e as torna propriedade dos homens, dando a eles em certas instâncias até mesmo o poder de vida ou morte sobre elas (Saffioti, 2001, 2002).  De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida por Convenção de Belém do Pará, enquadra-se como violência de gênero contra as mulheres “[...] qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Brasil, Presidência da República, 1996). Incluem-se aí violência física, sexual e psicológica, ocorrida seja no âmbito da família, da unidade doméstica, ou da comunidade, quanto perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, inclusive quando negligenciam esses tipos de violência. Trata-se de um fenômeno de dimensões mundiais, mas que no Brasil, como de resto na América Latina, tem se caracterizado por ataques brutais contra mulheres, não sendo poucos os casos que denotam extrema crueldade (SARDENBERG, 2018 ).  O artigo que abre nosso dossiê, Características do Abuso Sexual Infantil no Brasil, elaborado por Estelita Lima Cândido, Doutora em Biotecnologia e Professora do Curso de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Cariri e suas alunas e alunos (Milena Maria Felipe Girão, Robson Caetano Guedes Assunção,  Pedro Walisson Gomes Feitosa, Italo Constâncio de Oliveira e Isadélia Constâncio de Oliveira), nos mostra que a violência contra mulheres começa já na infância, como assédio sexual. Trabalhando com dados do  Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) no período de 2011 a 2017, as  referidas autoras se propõe a analisar as características das vítimas e perpetradores de abuso sexual, de crianças entre 0 a 9 anos de idade.  Segundo esses dados, as  meninas correspondem a 70% das vítimas, sendo o estupro a principal forma de violência perpetrada (62%), tendo homens como principais abusadores (81,6%), quase metade deles sendo parentes das vítimas e cometendo o crime de assédio na própria casa das vítimas.       112 Vol 8, N.2, Maio. – Agosto,  2020 • www.feminismos.neim.ufba.br • ISSN: 2317-2932 O artigo seguinte, Violência Sexual Contra Mulheres: Necessidade de Estabelecer um Perfil, de autoria de Simone Masagão, Thiele Muller Castro, Priscila Pavan Detoni e Carla Garcia Bottega, psicólogas vinculadas à Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS e à Universidade Federal da Fronteira Sul-UFFS, também trabalhou com dados do SINAN, neste caso restringindo-se aos casos de violência sexual contra mulheres, registrados em Porto Alegre no período de  2009 a 2016. Contudo, devido a uma série de lacunas relacionadas ao SINAN e as fichas de notificação, os resultados encontrados não permitiram estabelecer um perfil. Revelaram, porém, as grandes limitações dos nossos sistemas de coleta e registro de dados pertinentes à violência sexual, que precisam ser superadas para que possamos, de fato, combater e enfrentar esse tipo de violência de gênero.  Já o artigo de Júlio César Soares Aragão, Maria Cecilia Siqueira Ferreira, Marília Barros Padílha e Maria Martha Rennó Ribeiro Chaves Freitas, docente e alunas do Departamento de Ciências da Saúde do Centro Universitário de Volta Redonda – UNIFOA, Episiotomy In Brazil: A Narrative Review In An Evidence Based Perspective,  se volta para a questão da violência institucional contra mulheres no campo da saúde, destacando o caso da episiotomia, ou seja, da incisão usada na prática obstétrica para, supostamente, facilitar o parto. Trata-se, na verdade, de uma prática hoje vista pela Organização Mundial de Saúde como “injustificada e prejudicial”, mas comumente usada no Brasil. Para os autores, tal prática deve ser vista como uma “categoria de violência obstétrica”, sendo que os “obstetras brasileiros ignoram as evidências científicas”, o que torna “imprescindível reformular as práticas e atualizar os profissionais sobre as práticas desatualizadas.” Ainda pouco estudada no Brasil, a violência de gênero sociolinguística em termos de assaltos a fala de mulheres é o objeto do artigo seguinte, qual seja, Hierarquias de Gênero: Uma Análise Sociolinguística dos Assaltos ao Turno de Fala, trazido por Priscylla Pirasol de Carvalho, Taíse Simioni, Fabiane Simioni e Vera Lúcia Duarte Ferreira, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI). O artigo tem como objetivo verificar a relação entre  esses “assaltos ao turno e as hierarquias de gênero” no interior do que denominam de “comunidade de prática” da cidade  de Bagé – RS. Com base em trabalho de observação sistemática e registro de dados, observou-se não apenas uma “dominância masculina” nas falas, mas também várias tentativas “de silenciamento das pessoas definidas como mulheres a partir do uso dos assaltos ao turno de fala.” O que levou as autoras a propor  a existência de “uma relação entre as hierarquias de gênero (entre mulheres e homens) e estilos conversacionais dos participantes desta comunidade.” Outra faceta das violências de gênero, também ainda pouco estudada, o ódio homo-trans-fóbico é o tema central do artigo, Teoria Queer e Discurso de Ódio: Prenda Transgênera e a Análise de Comentários de Páginas da Internet Linkadas em Redes Sociais, de Júlia Menuci (Doutoranda em Direito na UNIJUÌ), Joice Nielsson (Professora do Curso de Direito da FMC) e Patricia Reis (Professora do Curso de Direito da UNIJUÍ). Baseando-se na noção de que  o discurso de ódio reflete-se no ato de “proferir comunicação que inferiorize/discrimine grupo ou pessoa pautando-se no gênero”, as autoras se voltaram para o registro e análise desse fenômeno tal qual se fez presente nos comentários relativos às homenagens à prenda transgênera do CTG Cancela da Fronteira.”   Concluem as autoras que, “ancorado na binariedade que impõe a existência de sujeitos masculinos e femininos no entorno social, o discurso de ódio se manifesta quanto ao gênero em tudo que vá contra as estipulações heterossexuais e de gêneros pautadas no sexo.” Propõem, assim, que se trabalhe no sentido de se  retirar, “a correlação entre sexo e gênero sob uma ótica morfológica.” Temos, na sequência, dois artigos que tratam da violência doméstica contra mulheres a partir de novas perspectivas. O primeiro, Gênero, Amor, Violência e Saúde a Partir do Diálogo Com Mulheres Usuárias de uma UBS, elaborado por Telma Low Silva Junqueira (UFAL), Isis Voronkoff Carnaúba de Castro (UFAL) e Sthéfanny Regina Santos Rocha Gonzaga (UFAL), se baseia em entrevistas com 02 mulheres de usuárias de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Alagoas, “com o objetivo de compreender os sentidos produzidos por      113 Vol 8, N.2, Maio. – Agosto,  2020 • www.feminismos.neim.ufba.br • ISSN: 2317-2932 elas acerca da interface entre gênero-amor-VCM-saúde.”  Os diálogos mostraram que embora o “amor” tenha emergido como “fator relevante na forma como as usuárias compreendem as relações de gênero”, foi, ao mesmo tempo, “questionado, transgredido e negociado em seus cotidianos.” De fato, como sugere o segundo artigo versando sobre violência doméstica, Elza Soares E A Insubmissão Das Marias Das Vilas Matilde: “Cê Vai Se Arrepender De Levantar A Mão Pra Mim”, de Lidiane Cossetin Alves (Mestranda em Letras da UNIOESTE) e Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza (Doutora e Docente no Curso de Letras da UNIOESTE), que se baseia em uma análise da linguagem poética dessa canção, vislumbra-se  um “insurgência feminina contextualizada na sociedade patriarcal no Brasil, que se expressa culturalmente através da canção brasileira.” Para essas autoras, essas “produções poéticas musicalizadas”, podem ”provocar  uma reflexão acerca da condição social”, que “possibilitaria emancipação e descolonização da mulher subalterna.” Podemos concluir esta apresentação, portanto, com uma nota de esperança: há uma insurgência feminina contra o patriarcado e sua expressão máxima nas violências de gênero, que cresce, ainda que lentamente, entre as mulheres brasileiras!    

Apresentação do Dossiê: As Múltiplas Facetas das Violências de Gênero no Brasil

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