Resenha de Hegemoniae contra-hegemoniadeTheotonio dos Santos (Coord.

Akcelrud, Alex

Portuguese

Portal de Revistas PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

 177Hegemonia e contra-hegemonia de Theotonio dos Santos (Coord.).∗  As mil faces da globalização por Alex Akcelrud∗∗  Com impressionante sucesso de público em geral e como alternativa de reflexão em espaços de produção de conhecimento, vários debates, conferências e publicações estão retomando, no Brasil, a tradição crítica do marxismo e do melhor da história social e econômica no século XX. A presença de vários intelectuais de porte e a publicação sucessiva de muitas de suas obras aqui vão além de enfrentar as ilusões da ideologia neoliberal e diagnosticar as cruas contradições em processo na economia contemporânea. Cresce a procura de uma ciência social descomprometida com o status quo, voltada a explicar as relações de dominação e os movimentos anti-sistêmicos nas relações internacionais. Aqui, isto marca a retomada da racionalidade histórica, que tem sido acuada e isolada  desde os anos 80, frente ao pensamento único acadêmico. A evolução do debate vem ganhando corpo aqui, com a edição brasileira de várias obras de intelectuais, como Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein, sobre o capitalismo contemporâneo entendido em sua longa formação histórica como Sistema-Mundo. Refletindo isso, os lançamentos dos volumes de Hegemonia e contra-hegemonia se tornam leitura obrigatória sobre as contradições do desenvolvimento econômico, perspectivas históricas e alternativas de poder no mundo atual. Pela primeira vez a tradução chegou na frente. Temos em primeira mão no Brasil textos inéditos e recentes de Wallerstein, Arrighi, Gunder Frank e Samir Amin, entre outros. Textos que, naturalmente, circularão mais tarde em vários outros idiomas, inclusive os seus originais. São trabalhos de referência do Seminário Internacional da Rede de Economia Global (REGGEN), realizado no Rio em agosto de 2003, com uma participação de assistentes inscritos e uma repercussão de mídia inesperadas. Iniciam uma atividade anunciada como permanente e se inserem em um plano de divulgação de trabalhos por várias formas de mídia e cursos. Já se projeta a criação de um Instituto Virtual de Relações Internacionais. Este processo de produção teórica e de debate significa um avanço em larga escala da teoria social em diagnosticar o capitalismo e as condições da sua superação, depois de décadas de hegemonia de uma história reacionária. Neste sentido, ninguém hoje tem os mesmos méritos que a                                                      ∗ Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2003-2004. ∗∗ Historiador da PUC-RJ, colaborador da revista Critica Social e Nação Brasil.  178 escola informal perceptível nos discursos de Wallerstein, Arrighi, Gunder Frank e Samir Amin. O processo ainda está em curso, e pelos potenciais de seu conteúdo e assistência crescente, tende a ampliar seu leque de  públicos e interlocutores na sociedade brasileira. São mais de mil páginas, com  textos de diferentes autores, em quatro volumes: Os impasses da globalização (I), Globalização: dimensões e alternativas (II), Globalização e regionalização (III) e Globalização e integração nas Américas (IV). O conjunto é enciclopédico, assim como a extensão dos aspectos abordados. Mas a variedade de origem geográfica, formação teórica, postura política e expectativa de futuro dos autores (com suas controvérsias inerentes) dá aos livros a dinâmica de leitura e a riqueza de conteúdo necessárias à sua rápida absorção e debate em qualquer espaço de reflexão coletiva sobre esse mundo de virada de século, seja na retrospectiva de longa duração ou na prospectiva mais imediata. Como escreveu Carlos Eduardo Martins na apresentação do vol. II, “o leitor terá a oportunidade de apreciar as interpretações... do que há de melhor no pensamento contra-hegemônico”, mas tem mais. Além da imensa diversidade das leituras e propostas contra-hegemônicas oferecidas, lê-se algo do que há de mais lúcido, pragmático, autorizado e até inescrupuloso do lado de lá, formando-se assim uma oferta vasta de reflexões e perspectivas a quem compare os autores. Para Samir Amin, o “relançamento econômico e social” da Europa é impossível sem uma ruptura com os EUA, pois seu predomínio sobre aquele continente é totalmente parasitário (sua hegemonia  não é mais do que militar). A suposta “prosperidade” americana tem como preço a estagnação da própria Europa, e esta só se salva se investir no seu crescimento os capitais que coloca à disposição dos EUA. Caso a Europa desistisse do liberalismo (espaço assimétrico de predomínio americano) e investisse no seu progresso, “a saúde artificial da economia dos EUA desabaria”, o que leva ao tom imperativo da conclusão: “A Europa será da esquerda ou não será”.(p. 187-188-vol.I). A depender da mais européia das vozes, a Europa não é. Porta-voz da inteligentzia política e da consciência histórica que projeta os passos da União Européia, o representante da Fundação Konrad Adenauer (este grande think-tank da UE), W. Hofmeister é taxativo: ninguém vai unir a Europa contra os EUA; as relações são mais de identidades do que de diferença entre nós e eles, sem mudanças desde o fim da II Guerra Mundial; a UE só apoiará uma ordem mundial multipolar se os EUA estiverem de acordo; os EUA são o sócio mais importante da UE rumo a uma ordem global estável; é inútil aplaudir cedo demais quando do conflito entre alguns europeus e os EUA, pois a OTAN (!) é a instituição mais importante das relações entre EUA e UE (visto o próprio engajamento militar impecável da Alemanha no Afeganistão). Assim ele disse no Seminário REGGEN, e não fugiu disso em “Interesses e perspectivas da União Européia” (Vol.III).  179Como é adequado à sua postura intelectual própria a um olhar amplo sobre o tema, Immanuel Wallenstein abre o volume I com uma erudita combinação entre a história política do Sistema-Mundo desde 1945 e o resgate do que há de melhor da produção teórica do populismo russo: os ciclos econômicos de Kondratiev que, aplicados aqui, permitem ver três períodos: 1945-1967/73 (apogeu hegemônico dos EUA); 1967/73-2001 (“último brilho do verão”); e 2001-2025/2050 (anarquia do sistema, incontrolável pelos EUA). Daí vislumbra e comenta vários desdobramentos possíveis na anarquia sistêmica, concluindo que “há fortes tempestades vindas de todas as direções, e o maior problema de todos os barcos será não ser emborcado”; e adverte que “os resultados serão a conseqüência de como agiremos coletivamente e concretamente nas décadas vindouras.” (p. 23). Temos, então, um mapa da trajetória dos movimentos anti-sistêmicos neste contexto de crise e urgência, mapa que é traçado pelo grande parceiro intelectual de Wallerstein, Giovanni Arrighi. Atendendo à mesma demanda, o texto militante de Samir Amin (“Refundar a solidariedade dos povos do Sul”) resgata a trajetória das articulações entre os países emergentes do III Mundo, relaciona a agressividade dos EUA frente ao III Mundo com as contradições entre os EUA, a Europa e o Japão. Ao concuir, aponta as condições de um novo internacionalismo terceiro-mundista, capaz de atrair a Europa. Em artigo de fôlego, Theotonio dos Santos sinaliza perspectivas reais de superação do status quo, em crise estrutural, rumo a uma civilização planetária que desenvolva os potenciais já acumulados de evolução sócio-econômica da humanidade. Para isto, parte da leitura rigorosa da raiz econômica do que se apresenta como Admirável Mundo Novo (a III Revolução Industrial) e, para além dos estertores do neoliberalismo e suas mistificações ideológicas, vê um verdadeiro potencial planetário de civilização. Este não se apresenta pelo profetismo reacionário propagandístico dos fins da história, mas por um otimismo revolucionário rigorosamente calcado nas etapas de desenvolvimento mais intrínseco do capitalismo contemporâneo, seus reflexos políticos nas relações internacionais ao longo do século XX e até hoje, seus impasses e perspectivas. André Gunder Frank resgata sua tese (1991) de que vivemos a III World War (no duplo sentido de guerra contra o III Mundo e 3ª Guerra Mundial), tentando legitimá-la como antiterrorista. Expõe a fragilidade estrutural dos EUA em sua sustentação no par Dólar-Pentágono; relaciona a depressão mundial em curso e a questão monetária; esquadrinha as relações assimétricas entre os EUA, de um lado, e Rússia, Europa, Japão e China do outro; explica a incidência das guerras do petróleo naquelas relações; define também o impacto do Petróleo e da tensão Euro x Dólar nas relações entre os EUA e Venezuela, Coréia do Norte, Irã e Iraque. Por fim, descortina as perspectivas da China no contexto asiático, como potência emergente.  180 O volume II começa e acaba com textos de Robert Brenner e Lúcio Flávio de Almeida, respectivamente, sobre o conceito/diagnóstico do imperialismo atual. Para Brenner, o belicismo na Guerra Fria visava os interesses territoriais da propriedade capitalista, mas não era o motor do desenvolvimento da acumulação de capital. Agora é, e eis aqui o caráter inovador do governo Bush. Aqui está redefinido o norte da política externa do Império, representando pouco mais do que empresas petroleiras, construtoras, o aparato bélico industrial e o sionismo, à revelia dos interesses restantes na própria burguesia norte-americana.   Frente a distintos projetos nacionais e inúmeros nacionalismos emergentes mal digeridos pela ciência social contemporânea, Lúcio Flávio de Almeida nos dá um texto fundamental, no qual propõe a atualização do conceito de imperialismo, o que implica  repensar os de soberania, Estado moderno, Estado nacional, nacionalismo e antiimperialismo. Teorizando o conceito de poder, Atílio Borón diagnostica a influência ideológica liberal na produção teórica da própria esquerda, como no caso dos aclamadíssimos livros de Toni Negri.  Num texto polêmico, consistente e instigante, Ana Éster Ceceña reafirma a vitalidade da hegemonia estadunidense. Passo por passo, ela diz quase o diametralmente oposto ao de Samir Amin, mas seu argumento também se choca com os de Wallerstein e muitos outros. A contradição fundamental que vê para a hegemonia americana não está na hegemonia em si, mas na crise do modo de produção capitalista. Aníbal Quijano expõe uma América Latina estagnada por uma burguesia internacional financeira e compradora, que valoriza o comércio externo no PIB, privatiza e endivida estados e enfraquece mercados internos. Na contra-hegemonia deste processo, novos atores: menos o velho sindicalismo, mais a emergência dos excluídos do campo e da cidade, como protagonistas populares.  Manoranjan Mohanty analisa a virada decisiva da Índia, vanguarda histórica do movimento não alinhado, rumo à aliança com os EUA, e suas respectivas contradições. Sedi Hirano e Luis Estensoro percebem modelos de desenvolvimento regional numa economia globalizada ao comparar o desenvolvimento do capitalismo na Ásia e na América Latina. Octavio Ianni vê a dinâmica da globalização gerando estruturas globais de poder, que desterritorializam a política. Nisto atua a mídia do grande capital, intelectual orgânico do bloco hegemônico. Na contra-hegemonia do mesmo processo, o mundo inteiro é cenário de construção de uma sociedade civil planetária, que pode enfrentar o desafio da desterritorialização. Ângelo Segrillo chama a si o duplo desafio de pensar a trajetória dos países ditos “ex-socialistas” e suas conseqüências para o nosso conceito de democracia. Expõe o rolo compressor neoliberal no leste europeu, em suas dimensões avassaladoras. A retração econômica lá foi bem maior do que a trazida pela Grande Depressão aos EUA. Epistemologicamente inovador, aponta necessidade de um conceito mais abrangente de democracia, capaz de aferir em conjunto seus aspectos econômicos, sociais e políticos.  181O Volume III, voltado aos nexos entre globalização e regionalização, permite ver como o espírito da coisa (hegemonia e contra-hegemonia) desce e reverbera na coisa (estes e aqueles cenários concretos em que particularidades geográficas, políticas e socioeconômicas são historicamente construídas, em compasso ou descompasso com o processo de globalização). Daí resulta uma complexa síntese teórica entre a autonomia inerente à trajetória de qualquer região e a força de atração geral que a economia-mundo e sua hegemonia imperial atual exercem sobre seus destinos. Tal complexidade é inacessível sem o concurso de especialistas que, indo além dos rigores exegéticos e do idiotismo da especialização, ponham suas lupas a serviço das difíceis articulações entre a parte e o todo; articulações estas que diferenciam o conhecimento estrito da ciência e o acúmulo de dados e descrições da racionalidade histórica. Neste volume são agrupados doze textos, onde se articulam os processos de globalização e regionalização em Ásia, África, Europa, América Latina, comunidade lusófona e, especificamente, os Bálcãs, a Índia e a China. O IV e último volume fecha o conjunto dos textos de referência do Seminário REGGEN. Neste livro a temática central é a integração nas Américas. Prefaciado por Celso Furtado e dedicado postumamente à sua memória e de Rene Dreifuss apresenta textos voltados à ofensiva estadunidense sobre a região, aos processos de integração regional, como sua expressão ou resposta contra-hegemônica, e à presença do narcotráfico na economia global e na América Latina. Orlando Caputo e Jaime Estay enfocam a ofensiva estadunidense através da anexação econômica, do consenso de Washington, dos TLC´s e da ALCA; Carlos Eduardo Martins, Marcelo Carcanholo, Julio Gambina e Agustin Crivelli abordam a ambiguidade e as debilidades do Mercosul como instrumento de afirmação regional, na forma em que hoje se apresenta; Pierre Salama, Luciano Coutinho, Elivan Rosas e Franklin Trein analisam os dilemas, as possibilidades e os riscos de inserção internacional e regional do Brasil; e Argemiro Procópio aborda a dimensão regional e global do narcotráfico. O livro se encerra com homenagens de Eduardo Portella a Celso Furtado e de Eurico Lima Figueiredo a Rene Dreyfuss.  Mais alguns meses, e o Rio de Janeiro irá sediar, em outubro, o próximo REGGEN, com a presença de importantes intelectuais contra-hegemônicos, como Tarik Ali, Samir Amin, Giovanni Arrighi, Atílio Borón, Michael Lowy, Ignácio Ramonet, Orlando Caputo, Julio Gambina, Ana Éster Ceceña, entre outros. Mirando, na outra ponta, o Seminário de agosto de 2003, pode-se prever a efervescência editorial a ser desencadeada nos meses subseqüentes. E isto se faz contra o vento e a maré da carência de recursos e financiamentos, de um lado, e a ideologia dominante no mundo acadêmico, do outro.  

As mil faces da globalização

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