Monteiro, João Gouveia

Portuguese

Revistas Científicas da Universidade Católica Portuguesa

283RecensõesQuando, em 1997, submeti à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a minha dissertação de doutoramento sobre a guerra em Portugal nos finais da Idade Média (1367‑1449), estava longe de pensar que esta poderia ser apenas a primeira peça de um qua‑dríptico que, quase três décadas volvidas, está agora em vias de ser concluído. Na verdade, em 2014, a Imprensa da Universidade de Coimbra publicou a tese douto‑ral de Miguel Gomes Martins (o meu primeiro e muito brilhante doutorando), que estudou a arte da guerra em Portugal no período de 1245 a 1367, tocando agora ao Coronel Carlos Filipe Afonso a alegria de ver editada a sua recente dissertação de doutoramento, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação competente da Sra. Professora Doutora Amélia Aguiar Andrade, que contou com a colabo‑ração (na qualidade de coorientador) do Doutor Miguel Gomes Martins. Esta terceira tese cobre o período situado entre 1128 (batalha de São Mamede) e 1249 (conquista de Faro), pelo que fica agora a faltar apenas a última pedra de uma construção a quatro mãos, algo ciclópica: a dissertação doutoral de António Martins Costa (meu orientando), aguardada para finais de 2024 e que nos transportará desde 1449 até ao final do reinado de D. Manuel I (1521). Com isso – e tal como escreveu o Prof. Doutor Francisco García Fitz no Prefácio da obra que aqui recenseamos – Portugal tornar‑se‑á um caso singular, já que «possivelmente nenhum reino ocidental conta, neste momento, com uma sequência tão homogénea de estudos sobre a evo‑lução da guerra e dos exércitos durante a Idade Média» (p. 12). Feito este enquadramento (que de certo modo é também uma declaração de interes‑ses), gostaria de partilhar algumas reflexões acerca da obra do Coronel Carlos Filipe Afonso, cuja versão original tive oportunidade de discutir em pormenor em provas públicas realizadas em julho de 2021 na Universidade Nova de Lisboa.Trata‑se de uma obra muito completa e abrangente, que nos transporta das origens da nacionalidade até à importante viragem que corresponde ao início da governação de D. Afonso III, o príncipe improvável que veio de França, da corte do seu primo São Luís. Curiosamente, o autor partiu de uma posição muito difícil: não tem uma formação académica convencional em História e, além disso, a sua brilhante carreira de militar (atuando muitas vezes em cenários internacionais distantes) obrigou‑o a trabalhar quase exclusiva‑mente com fontes já publicadas e acessíveis a toda a comunidade científica. O desafio era, por isso, tremendo, tanto mais que o período em apreço é muito exigente devido à escassez de fontes, ao largo uso do latim e às especiais dificuldades de datação ou de localização geográfica de muitos eventos. E, todavia, logo na leitura dos primeiros capítulos, o leitor mais exigente sente‑se tran‑quilo quanto a essa dúvida maior: o naipe de fontes impressas foi suficientemente grande para AFONSO, Carlos Filipe A guerra cristã na formação de Portugal, 1128-1249Lisboa: Edições Colibri, Comissão Portuguesa de História Militar, 2022 . 622 p . ISBN: 978-989-566-187-9JOÃO GOUVEIA MONTEIROdoi: https://doi.org/10.34632/lusitaniasacra.2023.15950   Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras  https://orcid .org/0000-0003-3418-0217284o Autor conseguir chegar a conclusões sólidas e que acrescentam algo de muito proveitoso ao que já sabíamos, ou à forma como olhávamos a história militar portuguesa dos séculos XII e XIII. Para isso contribuiu o aproveitamento que fez da vasta coleção de forais ibéricos, da valiosa coletânea dos Portugaliae Monumenta Historica e das Inquirições, entre muitas outras fontes, onde se incluem até – o que me parece muito saboroso – algumas cantigas de escárnio e maldizer. Usou também diversas fontes narrativas (cristãs e islâmicas), mas com cautelas avi‑sadas. Do mesmo modo, recorreu à sua experiência de militar para perscrutar de uma forma diferente a mesma realidade para a qual muitos de nós já tínhamos olhado antes, sem todavia a termos visto da mesma forma. Apreciei ainda o esforço que o candidato fez para alcançar um bom conhecimento da bibliografia ibérica e internacional da especialidade, embora seja inevitável o privilégio de algumas obras, como a de James Powers, A society organized for war: the Iberian municipal militias in the central Middle Ages, editada na California em 1988.Sublinho também, com muita alegria, que esta esforçadíssima obra (tem 2826 notas!) está muito bem escrita e que as ideias do autor são expressas de forma particularmente clara. Temos, assim, 527 páginas de leitura agradável, completadas por 56 páginas de Fontes e Biblio‑grafia e por um útil Quadro Cronológico Comparado de 38 páginas. O texto inclui 20 tabelas ou quadros, 18 Mapas e 17 Figuras de reprodução a preto e branco bastante asseada, especial‑mente úteis para o melhor conhecimento do armamento medieval e das técnicas de combate.O livro encontra‑se organizado em Introdução, seis Capítulos e Conclusão, e a sua lógica interna parece‑me assaz coerente. A Introdução (p. 23‑53) é muito completa e confi‑gura uma mise au point bastante segura do estado da investigação sobre a arte militar medieval ibérica, inserida no seu contexto internacional. As fontes selecionadas para a investigação são identificadas sucintamente, mas de forma clara e competente. Do que se segue, devo dizer que gostei francamente da opção pela inclusão de «sínteses conclusivas» no final de cada capítulo.No Primeiro Capítulo, dedicado ao tema «Sociedades e Poderes» (p. 55‑79), o Autor enfatiza muito bem a importância da guerra na construção da primitiva sociedade medieval portuguesa. Como não poderia deixar de ser, é dedicada uma especial atenção à presença islâmica na Península Ibérica, com domínio suficiente da bibliografia da especialidade, ainda que a obra relevante de Josep Suñé Arce acerca da mobilização dos grandes exércitos esta‑tais muçulmanos (convocados a partir das principais cidades e contrastantes com as escassas guarnições rurais) só seja parcialmente rentabilizada, o que se compreende devido à data tar‑dia da sua publicação. O Segundo Capítulo (p. 81‑165) ostenta o título «Espaços» e é porventura o mais inesperado do trabalho. Procura relacionar o exercício da guerra com o clima, a orografia e a vegetação, o que é muito interessante. Nesta secção, o candidato tira bom partido da sua sabedoria castrense, o que também mostra como a simbiose no plano académico entre civis e militares é muito desejável, como sempre dizia o saudoso Senhor General Manuel Themudo Barata, patrono ilustríssimo desta edição. Destaco a dialética feliz entre «cavalos‑inverno‑ali‑mentos‑saúde», o que imprime um sentido prático muito desejável à narrativa. Aqui, não pude deixar de me recordar do caso de Carlos Magno, que, ao longo de um reinado de quatro déca‑das e meia, só parece ter falhado um ou dois anos de campanha militar: ocorreu isso em 791 e hoje sabe‑se (graças a Carroll Gillmor) que tal anomalia se deveu a uma epidemia equina de larga escala, provocada pela picada de um mosquito! 285RecensõesLouvo também as diversas referências aos esforços do Tenente‑Coronel Augusto Bote‑lho da Costa Veiga para produzir conhecimento na área temática deste capítulo. Na verdade, ele foi o melhor da sua geração militar, em matéria de análise da história medieval portuguesa. Mesmo quando parece superficial, não deixa de impressionar o esforço do Autor em segmen‑tar racionalmente o território em que nasceu Portugal, recorrendo a Al‑Idrisi e a outras fon‑tes muçulmanas, assim como a geógrafos modernos de mão cheia, como Orlando Ribeiro. Embora se chegue ao fim do ponto 2.2 («Orografia e Coberto Vegetal», p. 96‑121) um pouco com a sensação de que valeria a pena ter ido (ainda) mais longe, acho que valeu muito a pena e que, depois de Costa Veiga, se reabriu aqui um caminho para o futuro.O capítulo terceiro (p. 167‑286) dedica‑se às «Condições e recursos para a guerra». É um capítulo crucial, encontrando‑se subdividido em duas grandes áreas: i) «Os contin‑gentes» (p. 167‑251), onde se incluem os «companheiros do rei», as mesnadas senhoriais, as ordens militares, os municípios e os «outros combatentes»; ii) «A obtenção e manutenção do potencial militar» (p. 252‑286), incluindo os meios humanos, as montadas e os recursos materiais. Todo este conjunto (dedicado àquilo a que poderíamos chamar as ‘infraestruturas da guerra’) foi, em geral, bastante bem conseguido, mau grado a consabida dificuldade em dis‑tinguirmos de forma precisa a mesnada real (os companheiros mais íntimos do monarca, os seus familiares e os descendentes destes), por um lado, e, por outro, a guarda do corpo do rei (isto é, os escudeiros, os besteiros e outros auxiliares). Por esclarecer ficou o significado exato do termo «lança», que me permito duvidar que, em Portugal, incluísse muitos combatentes: com efeito, se o potencial bélico medieval português já é surpreendente contabilizando em média um cavaleiro ou homem de armas (com, eventualmente, um auxiliar) por cada «lança», imagine‑se o número de efetivos se cairmos no engodo de multiplicar uma «lança» por cinco ou mais homens. Considero isso impossível, salvo casos excecionais, mas o Autor tem noção do problema e acautelou bem a situação.Na alínea relativa às «montadas» (p. 274‑279), tema de que gosto particularmente, o Coronel Carlos Afonso compara mesmo o desempenho militar dos cavalos ibéricos com os da Europa transpirenaica, além de dedicar uma extensa nota (n.º 650, p. 277), às éguas e aos gara‑nhões, que me pareceu excelente e que mereceria, talvez, figurar no corpo principal do texto.Já na alínea dos «recursos materiais», segmento bastante asseado e útil, sente‑se a falta de uma análise mais profunda do armamento individual, ofensivo e defensivo. Porém, bem sabemos que um doutorando não pode responder a todos os desafios, sob pena de nunca che‑gar ao fim do seu caminho!O capítulo quarto (p. 287‑356) é dedicado aos «Sistemas Fortificados» e comporta a análise da «dimensão técnica» (principais características morfológicas dos castelos, suas influências e evolução), da «dimensão estratégica» (linhas de defesa, essencialmente) e ainda dos «serviços em torno do castelo», aqui se incluindo a obtenção de informação relevante, a vigilância dos muros e a construção e reparação das fortalezas. Este capítulo inclui onze pre‑ciosos mapas de apoio (sobre fortificações ativas e sua inserção em linhas de defesa regional, do Alto Minho até ao Algarve) e confere uma profundidade muito interessante aos trabalhos sobre castelologia medieval portuguesa produzidos nas últimas décadas por Mário Jorge Bar‑roca e Miguel Gomes Martins, entre outros autores. 286 A «Prática da Guerra» é o tema do capítulo quinto (p. 357‑473). Aqui se anali‑sam, sobretudo, os três tipos principais de operações que a guerra medieval comportava: i) a «guerra guerreada» (cavalgadas, presúrias, operações de saque e devastação de território); ii) a guerra de cerco; iii) as batalhas campais. A análise é bastante lúcida e precisa, sendo apoiada por diversas tabelas que permitem ao leitor reter com facilidade a localização e a cronologia das principais operações militares, além de reconhecer as fontes cruciais para o respetivo estudo. Não faltam também ilustrações preciosas extraídas de algumas das melhores fontes iconográficas ibéricas (como por exemplo as «Cantigas de Santa Maria», do rei Afonso X, «O Sábio»). Nota‑se uma grande preocupação de rigor terminológico e a ambição de ‘chegar ao detalhe’, aqui se incluindo, nomeadamente, a análise do modo de montar predominante entre a cavalaria‑vilã, assunto a que o autor terá certamente oportunidade de voltar no futuro. Inevitavelmente, a análise das técnicas poliorcéticas (ataque e defesa de fortificações) não é exaustiva, tal a quantidade de operações deste tipo registadas em Portugal na cronologia em apreço. Só na secção das «formações de combate» (p. 459‑463) se sente a falta de abonações mais substantivas, seguramente ditada pela avareza das fontes narrativas, lacuna que a secura das fontes de arquivo não permite colmatar.Por fim, o capítulo sexto (p. 476‑527), intitulado «Outras dimensões da guerra», é um remate muitíssimo digno da obra. O não era nada fácil de conseguir, pois o desafio – a que a influência científica de grandes inovadores da história militar medieval, como John Keegan, Philippe Contamine ou Claude Gaier não é seguramente alheia – era enorme: trata‑se aqui de analisar o treino militar, as isenções de serviço, a sustentação das forças em campanha e, sobretudo, a «dimensão psicológica» da guerra e o day after dos combates, nomeadamente o tratamento dispensado aos inimigos vencidos e capturados. Temas muito exigentes e variados, aos quais o Coronel Carlos Filipe Afonso procurou corresponder com dignidade e com muito boas ideias, sem preocupação de exaustividade, devendo reconhecer‑se‑lhe o mérito de nunca vestir o fato do sapateiro que pretendeu ir além da sua chinela, sobretudo quando o cansaço resultante de uma investigação tão longa e minuciosa já pesava inevitavelmente sobre os seus ombros.Em síntese, e para concluir, estamos perante uma obra valiosíssima, que configura um avanço monumental relativamente ao que já sabíamos sobre a arte militar portuguesa entre os meados do século XII e os meados de Duzentos. A partir de agora, qualquer investigador que queira debruçar‑se sobre o assunto dispõe de um guia seguro, panorâmico (com tudo o que isso encerra de útil, mesmo quando parece arriscado) e repleto de intuições luminosas. Tanto mais que este livro – em boa hora editado pela prestigiada Colibri (que à História de Portugal tem prestado tantos e tão bons serviços pela mão do Dr. Fernando Mão de Ferro) e integrado numa nova coleção da dinâmica e muito competente Comissão Portuguesa de História Mili‑tar, liderada pelo Senhor General João Vieira Borges – foi escrita por um militar de carreira que se apaixonou pela História e que a tomou por companheira inseparável ao longo das suas múltiplas aventuras e missões, em Portugal e no estrangeiro. Deste cruzamento invulgar resul‑tou um olhar muito original e inspirador sobre a paisagem militar medieval portuguesa dos primórdios da nacionalidade. Oxalá os leitores e os investigadores mais jovens saibam apro‑veitar tudo o que de bom este livro encerra, e completar aquilo que ele inevitavelmente deixa em aberto.

AFONSO, Carlos Filipe – A guerra cristã na formação de Portugal 1128-1249

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AFONSO, Carlos Filipe – A guerra cristã na formação de Portugal 1128-1249

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