É possível que algum dia eu tenha esquecido: Marília te chamava, Mil te digo agora, como mil chamas a arder em redor de um coração maior que o mundo

Luís Filipe Castro Mendes

Convergência Lusíada

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1798: GONZAGA NA ILHA DE MOÇAMBIQUE Luís Filipe Castro Mendes É possível que algum dia eu tenha esquecido: Marília te chamava, Mil te digo agora, como mil chamas a arder em redor de um coração maior que o mundo. Muitos anos passaram sobre nós: cuido agora com maníaco rigor da nova edição desse livro que unirá para a eternidade os nossos nomes, enquan­to nossos corpos se separam na viva dor a que sempre acode o esquecimento. Que importam mil edições, que importa a posteridade, se para sempre perdi o que nunca de verdade tive, o teu corpo, a tua voz feita corpo, os bruscos movi­mentos da tua alma inquieta, o que eu sentia na sede da tua boca, no frio que percorria a tua pele quando eu te tocava devagar e no silêncio que pesava entre nós como um prenúncio de anoitecer? É possível que um dia eu tenha esquecido: Mil, o meu corpo não encontra há muito. a lenta jornada do desejo que para sempre deixaste em mim. E nos versos fica afinal tão pouca coisa: lembro-te agora nesta ilha, Muípiti lhe cha­mam, onde alinho versos antigos e negoceio escravos e empenhos. Deito-me na praia, oiço os cantares índios, as rezas muçulmanas, as procissões da nossa Igreja - fecho os olhos, a que lugar pertenço, a que franja do Império ficará por fim associada a minha memória e as palavras que tão cuidadamente juntei para ti? Coimbra, Beja, Vila Rica e por fim esta ilha estranha, entre o Oriente e a cafraria, onde até da minha solidão me venho despedir? Ah, campos áridos de Minas, duros como os do Alentejo, tão longe desta natureza diversa e trai­çoeira, que não se sabe África ou Ásia e que vive ensombrada pelo tremendo forte onde Camões penou! Meu amor, amor para sempre perdido, o segredo de todos os poemas é só este grito imenso a tudo o que temos para perder e a impúdica alegria que fazemos nascer da mesma dor. Todos sabemos isto e depois continuamos a viver: comerciamos, vendemos influências e empenhos, casamos com a her-87 <leira mais rica do lugar e ao entardecer caminhamos devagar para a casa que nos espera. Mil, tu existirás para sempre nos meus poemas, mas disso, ao con­trário de tantos, eu não me orgulho - porque só ter-te até ao fim do gozo e do sofrimento bastaria ao meu coração maior que o mundo. Encaminho os meus passos para casa, viro as costas ao mar que não é nosso e só quero esquecer-te, para sempre esquecer-te, deixar o teu nome, Mil, o teu nome de Marília neste livro de versos que negará para sempre os nossos no­mes e o nosso indizível amor. 88 

1798: GONZAGA NA ILHA DE MOÇAMBIQUE

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