Resenha do livro de Peter Berger, publicado originalmente em inglês em 2014 pela renomada editora De Gruyter, e que pode ser considerado um clássico do campo das ciências sociais da religião no mundo. Isto pelo fato de o autor apresentar uma síntese de sua obra magistral produzida nos anos 1960 e 1970 com complementações, mutações e reconfigurações significativas para o entendimento do fenômeno religioso na contemporaneidade

Sofiati, Flávio Munhoz

Portuguese

Portal de Periódicos Científicos da PUC Goiás

858 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.Flávio Munhoz Sofiati**TEORIA DA SECULARIZAÇÃO REVISITADA*–––––––––––––––––*    Recebido em: 19.06.2021.  Aprovado em: 31.08.2021. **  Doutor em Sociologia (USP). Professor Associado de Sociologia (UFG, Faculdade de Ciências Sociais, Programas de Pós-graduação em Sociologia e Pós-graduação em Antro-pologia Social). Membro do Observatório Juventudes na Contemporaneidade e do Núcleo de Estudos de Religião “Carlos Rodrigues Brandão”. E-mail: sofiati@gmail.comDOI 10.18224/cam.v19i3.8993BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.O livro de Peter Berger, publicado originalmente em inglês em 2014 pela reno-mada editora De Gruyter, já pode ser considerado um clássico do campo das ciências sociais da religião no mundo. Isto pelo fato de o autor apresentar uma síntese de sua obra magistral produzida nos anos 1960 e 1970 com complemen-tações, mutações e reconfigurações significativas para o entendimento do fenô-meno religioso na contemporaneidade.Como destaca José Casanova, em conferência proferida na ocasião do evento organizado pe-los Núcleo de Estudos de Religião “Carlos Rodrigues Brandão” (UFG) e Núcleo de Estudos Avançados Religião e Globalização (PUC Goiás), trata-se de uma obra que apresenta mudanças de enfoque e de perspectiva acerca do fenômeno religioso. A obra é organizada em seis capítulos, acompanhada de resposta de três importantes pensadores sociais da religião (Nancy T. Ammerman, Detlef Pollack e Fen-ggang Yang), cujos três primeiros capítulos podem ser considerados em seu conjunto como o discurso de Berger contra o próprio Berger e os três últimos capítulos como uma síntese sobre o que pensa o novo Berger. O autor informa que a “proposta fundamental deste livro é que a nossa era [mundo moderno] seria mais bem descrita como pluralista do que como secular” (p. 147).R E S E N H A859 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.Todavia, faz-se necessário destacar que esse “novo” Berger carrega muito do Berger “clássico” tão bem conhecido pelos estudiosos e estudiosas da religião no mundo. Ao advogar a necessidade de produção de um novo paradigma, aquele do pluralismo religioso, ao qual o livro se propõe a trazer apenas uma contri-buição inicial, o autor não abandona a sua interpretação da teoria da seculari-zação. Berger, ao enfatizar na obra o caráter pluralista do mundo moderno, na verdade, ressignifica este paradigma ou mesmo o atualiza na medida em que fortalece sua constatação de que a secularização, entendida como redução da presença e influência religiosa na sociedade, tem sido cada vez mais acompa-nhada do fenômeno da dessecularização, isto é, do movimento de renovação das religiões e principalmente das práticas de fé na modernidade. Dessa forma, entendo que o autor destaca em seu livro os limites da teoria da secularização, nega a tese hard de que secularização significa o declínio absoluto da religião na modernidade e defende a construção de um novo paradigma do pluralismo.Já em seus textos clássicos, Berger informa que o pluralismo religioso engendrou uma era das redescobertas das heranças confessionais. O que o autor defende em seu novo livro é a necessidade de se pensar um novo paradigma para a com-preensão das religiões na contemporaneidade: o paradigma do pluralismo re-ligioso. Não somente isso, mas o pluralismo de ideias religiosas e seculares. Nesse sentido, Berger revisita a teoria da secularização dentro do espectro do pluralismo religioso e aponta para a necessidade de um novo paradigma ainda em construção. Por isso, ele não refuta a tese da securalização/desseculariza-ção, apenas a insere numa nova perspectiva, atualizando seu enfoque.A trajetória de Peter Berger nos estudos de religião evidencia a necessidade de pesqui-sas permanentes de um fenômeno que tem se transformado de forma muito rápida na atualidade. Desde o final do século XX e início de século XXI o au-tor já havia apontado para a reconfiguração de suas análises, repensando e até mesmo refundando sua perspectiva sobre a religião. Assim, em seus escritos da década de vinte do novo século há a ênfase na ideia do pluralismo enquanto paradigma em construção. O livro em voga é um testamento destas transfor-mações no modo de entender a religião em sua interface com a modernidade. Diz que não é o caso de substituir uma teoria pela outra, mas defende a neces-sidade de pensarmos um novo paradigma de modernidade e religião.O elemento central da mudança de enfoque consiste no fato de haver um novo enten-dimento do significado do pluralismo no processo de autonomia relativa das esferas sociais em relação à esfera religiosa. Trata-se da coexistência nas men-tes dos indivíduos e nos espaços sociais de dois pluralismos: aquele das dife-rentes religiões e aquele dos discursos religiosos e seculares. Berger destaca um certo equilíbrio cognitivo, uma relação de fluidez entre ideias religiosas e ideias seculares vivenciada pelos indivíduos no mundo moderno. As pessoas, 860 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.inclusive aquelas fervorosamente religiosas, operam com ideias seculares nas áreas importantes da vida como, por exemplo, a medicina, sem abandonar suas ideias religiosas, defende o autor.Berger trata do pluralismo a partir da ideia de que no mundo contemporâneo as pessoas estabelecem cada vez mais sínteses muitas vezes contraditórias. Trata-se não somente de um pluralismo teórico, mas de um fato empírico experimentado por pessoas comuns. Há, neste cenário, certa “contaminação cognitiva”, isto é, a convivência de cosmovisões no contexto social. Para o autor, a influên-cia mútua tende a produzir compromisso cognitivo: “[...] se as pessoas con-tinuam a falar umas com as outras, elas se influenciarão umas às outras” (p. 21).  O pluralismo gera também “dissonância cognitiva” e relativização permanente. “Qual-quer interação ampliada com outros que discordam da cosmovisão de alguém relativiza esta última” (p. 22). A interação entre indivíduos pertencentes a cos-movisões diferentes produz relativização das suas crenças, ideias, opiniões. O plu-ralismo torna a relativização em uma situação permanente, havendo a sua glo-balização na modernidade. “Toda vida se torna um interminável processo de redefinir quem o indivíduo é no contexto das possibilidades aparentemente infinitas apresentadas pela modernidade” (p. 27).O autor entende que as estruturas do sistema capitalista, permeadas pelos seus merca-dos, democracias e discursos tecnológicos, legitimam as possibilidades de es-colhas dos sujeitos, inclusive as escolhas religiosas. Entretanto, Berger alerta que o pluralismo é um fator importante, mas não o único da multiplicação das ofertas de possibilidades. O fato é que essa realidade gera incerteza e, sobre-tudo, inquietação. “O pluralismo relativiza e com isso enfraquece muitas das certezas com as quais os seres humanos costumam viver” (p. 33). Há, assim, um processo de reconstrução das instituições e de desinstitucionalização das crenças. Segundo Berger, “[...] o pluralismo tem o efeito de relativizar as cos-movisões, trazendo à mente o fato de que o mundo pode ser compreendido de maneiras diferentes” (p. 68).O fundamentalismo surge neste cenário como um esforço de restauração da certeza ameaçada. Por outro lado, o relativismo, que tem o paradigma da pós-moder-nidade como base teórica de sua cosmovisão, apresenta-se como possibilidade de alívio da inquietação. Mas para Berger a maioria das pessoas vivenciam o meio-termo, isto é, vivem em situação pluralista administrando pragmatica-mente o fundamentalismo e o relativismo em suas vidas.A situação pluralista do mundo atual é marcada pela individualidade, acompanhada pela crise das instituições, e o desenraizamento, provocado principalmente pela urbanidade. Por isso, entende o autor que a modernidade tende a fortale-cer o pluralismo por meio da urbanização, migração, educação ampla, acesso 861 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.às tecnologias da informação e comunicação. As pessoas no mundo atual têm a consciência de que vivem em uma realidade com modos de vida diferentes, com cosmovisões diferentes.Berger entende que a modernidade leva necessariamente ao pluralismo, mas não leva necessariamente à secularização. “O mundo contemporâneo, com poucas ex-ceções, é tão intensamente religioso como qualquer outro na história. Todas as principais tradições religiosas não somente sobrevivem, mas geraram podero-sos movimentos de renovação” (p. 55). Para o autor, a teoria da secularização pensada como declínio da religião é uma abordagem eurocêntrica incapaz de entender a religião em sua interface com a modernidade.Por isso, no caso da esfera religiosa, o pluralismo religioso se tornou um fenômeno global. Mesmo no caso do cristianismo há diferentes relações com a moderni-dade, há múltiplos cristianismos na contemporaneidade. Berger informa que “[...] o pluralismo enfraquece a certeza religiosa e abre uma plenitude de es-colhas cognitivas e normativas” (p. 52), sendo que muitas destas escolhas são de origem religiosa. Há um mercado internacional de religiões disputando a preferencia dos clientes. Tal cenário é permeado pela cultura consumista que legitima a ideia de preferência religiosa e permite ao fiel escolher uma prática de fé a partir de um leque diversificado de opções. Portanto, o pluralismo retira a religião do nível da certeza, da herança, e leva para o nível da opinião, da escolha pessoal. Isso tem afetado as estruturas de plausibilidade das religiões, principalmente a que representam a tradição, dando a possibilidade da dúvida ao fiel e produzindo um efeito corrosivo na relação com as instituições. O livro de Berger nos lembra que a função principal das instituições religiosas é de fazer memória e domesticar as experiências extraordinárias dos fundadores daquela prática de fé. A instituição compartilha com as massas de fiéis uma doutrina, ritualizada e articulada em torno de comunidades. Assim, a objetividade das instituições é transportada para as consciências dos indivíduos. O processo de desinstitucionalização desmantela essa objetividade, a subjetiviza. O plura-lismo solapa as certezas da religião, possibilita as múltiplas escolhas das práti-cas de fé. Por isso neste contexto a memória é rompida, fragmentada, fazendo com que o indivíduo seja obrigado a escolher entre diferentes possibilidades religiosas e não religiosas.O mundo fragmentado como um quebra-cabeça precisa ser permanentemente remon-tado pelos sujeitos a partir das peças disponíveis na realidade, produzindo uma sociedade de buscadores. Conforme Berger, “[...] a maioria das pessoas religiosas que vivem em sociedades modernas é constituída de ‘buscadores’” (p. 90). A adesão se torna negociada com a instituição, gera trânsito, possibi-lita múltipla pertença, condiciona à peregrinação. Nesse sentido, a subjetiva-ção é o aspecto individual da desinstitucionalização em um cenário em que o 862 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.pluralismo religioso e a liberdade religiosa se auto alimentam, havendo uma confluência proporcionada em escala global.O pluralismo muda o caráter das instituições religiosas e a relação entre elas; muda a relação entre o clero e os leigos: o laicato sem coerção é empoderado e cria capacidade de negociação da adesão. As religiões que representam a tradição têm dificuldade em se comportarem diante desta nova realidade. Foi o caso do catolicismo, por exemplo. O pluralismo é incompatível com a autocom-preensão católica pré-moderna cuja cristandade impossibilitava a liberdade religiosa. O Vaticano I reforça estes princípios, porém o Vaticano II abala as certezas, os consensos católicos, e promove uma redefinição da relação do catolicismo com o mundo, de respeito mútuo e abertura. O Iluminismo deu liberdade à religiosidade e o Vaticano II promoveu a abertura da Igreja católica para o mundo moderno.Berger afirma em seu livro que a teoria da secularização, enquanto declínio da religião na modernidade, está equivocada e precisa ser substituída por uma teoria do pluralismo, ainda em construção. Todavia, constata também que a teoria da secularização não estava completamente errada, visto que a modernidade re-almente produziu discurso secular possibilitando aos sujeitos lidarem com as dimensões da vida sem recorrer ao discurso religioso.O autor evidencia que o discurso secular coloniza a mente subjetiva dos indivíduos e também a ordem objetiva da sociedade, fazendo com que as pessoas modernas atuem em várias dimensões da vida “como se Deus não existisse”, numa alu-são ao termo cunhado do direito e formulado por Grotius. Há três exemplos no livro: a economia de mercado, as instituições burocratizadas e o discurso da tecnologia. Assim, “[...] o discurso secular se insere no mundo turbulento do pluralismo religioso” (p. 111). Berger enfatiza também a posição privilegiada da secularidade na vida pública. “Os indivíduos e as igrejas são livres para proclamar a sua fé nos púlpitos, nas esquinas das ruas e nas escolas que elas sustentam, mas não nas aulas de ciência pagas pelos contribuintes” (p. 155). Destaca-se, então, a coexistência entre pluralismo religioso e secular, onde secularismo e religião criam pressão entre si e se retroalimentam. O sujeito contemporâneo manipula estes diferentes discursos a partir da multiplicação das estruturas de relevância presentes na realidade social, apesar da presença poderosa do discurso secular no mundo moderno nas várias versões da modernidade para além do modelo ocidentalizado.Em síntese, o livro destaca os múltiplos pluralismos existentes na contemporaneidade: o pluralismo religioso presente nas mentes e na sociedade; o pluralismo entre discurso secular e discurso religioso; o pluralismo de diferentes versões da modernidade com diferentes delineamentos de coexistência entre religião e secularidade. Mas Berger concorda que o discurso secular é privilegiado nas 863 , Goiânia, v. 19, n. 3, p. 858-863, 2021.mentes os seres sociais, mesmo que não exclusivo, garantindo assim a valida-de da teoria da secularização. Berger entende que a teoria da secularização não está errada no sentido de entender que o discurso secular se tornou muito im-portante na modernidade apesar de sua convivência com as formas religiosas. Neste sentido, como busca-se justificar neste texto, Berger não nega a secula-rização, mas, sem abandonar a tese da modernidade secularizada, deixa evi-dente os limites de seu alcance e a necessidade de um novo paradigma. 

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