“MAS O QUE É CLARO É QUE OS ANOS 2020 vão ser decisivos para o poder global americano e chinês, num tempo em que o equilíbrio dos poderes estratégico, económico e tecnológico entre Washington e Pequim estão numa maior proximidade da paridade do que alguma vez estiveram. Os anos 20 vão, portanto, ser uma década em que se viverá perigosamente”, assim se expressava Kevin Rudd, ex-Primeiro-Ministro trabalhista da Austrália, num discurso proferido na Asia Society. É neste contexto e nesta era complexa que se lança o debate sobre o lugar e rumo do Sudeste Asiático.info:eu-repo/semantics/publishedVersio

Canas Mendes, Nuno

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86JANUS 2022“MAS O QUE É CLARO É QUE OS ANOS 2020 vão ser decisivos para o poder global americano e chinês, num tempo em que o equi-líbrio dos poderes estratégico, económico e tecnológico entre Washington e Pequim estão numa maior proximidade da paridade do que alguma vez estiveram. Os anos 20 vão, portanto, ser uma década em que se viverá perigosamente”1, assim se expressava Kevin Rudd, ex-Primeiro-Ministro trabalhista da Austrália, num discurso proferido na Asia So-ciety. É neste contexto e nesta era complexa que se lança o debate sobre o lugar e rumo do Sudeste Asiático. Toda a discussão em torno da lógica de atua-ção dos países do Sudeste Asiático mem-bros da ASEAN (o ASEAN way), os limites do seu método de consenso e a coesão (ou falta dela) acabam na definição do que co-mummente se aponta como a estratégia do agrupamento regional - o hedging – que ba-sicamente consiste na disposição destes paí-ses se posicionarem, com diferentes níveis de intensidade e alinhamentos variáveis, pe-rante a tensão e competição, mais ou menos responsável, entre os EUA e a China. Uma geometria variável que reflete a necessidade de lidar com todos sem alinhamento ou pre-ferência manifesta, na tradição da coexistên-cia pacífica que caracteriza a ASEAN desde a sua já distante fundação, em 1967. Dando como incontornável a presença de um e de outro, o Sudeste Asiático tem de lidar com a assertividade acrescida da liderança chine-sa de Xi Jinping e das respetivas iniciativas, com a Belt and Road Initiative à cabeça, e com a retração da administração Trump que a nova de Biden tem procurado, ainda de forma não totalmente nítida, colmatar, com iniciativas várias, com destaque para a revita-lização do Quad e mais recentemente com o lançamento do acordo AUKUS, mais adiante abordado. Adicionalmente, também é co-nhecida a dificuldade de se ter uma visão de conjunto coesa, o que implica analisar a si-tuação particular de cada país. Não só a crise pandémica iniciada em 2020 veio agudizar a noção do menor empenhamento do governo dos EUA como, simultaneamente, sublinhar a presteza de Pequim, o que reforça os sen-timentos de ambivalência, como revelou um estudo do CSIS (Washington). Este estudo baseia-se num inquérito que, registando a perceção apreensiva da influência crescen-te da China no SE Asiático, revela visões complexas e divergentes sobre a China (se traz vantagens ou desvantagens), e grandes preocupações sobre a competição estratégi-ca China-EUA e o seu impacto na ASEAN, para além de demonstrar que as elites estão particularmente atentas às ameaças não--tradicionais e económicas. Não parecendo ter aqui especial significado nenhum deba-te sobre uma nova Guerra Fria, trata-se de uma questão básica de afirmação da região perante o embate entre os dois gigantes, procurando salvaguardar os seus interesses numa zona de confluência de poderes.A mesma ambivalência regista-se em relação ao novo conceito de Indo-Pacífico, onde até ao presente não se vislumbrou uma perspetiva coerente, seja pela maleabilidade do mesmo seja pela pressão externa, como assinalaram Hoang Thi Ha e Robert Sutter. A Indonésia e o Vietname adotaram uma postura mais sa-liente e é de admitir que em relação ao tema a região procure adaptar-se e tirar vantagens, potenciando o papel do East Asia Summit e o diálogo da ASEAN com os membros do Quad, no seu todo ou individualmente (por exemplo na Quad Vaccine Partnership ou na Supply Chain Resilience Initiative). Há factos que falam por si: a China é o maior parceiro comercial deste conjunto e nos finais de 2020 a assinatura da formidável Regional Comprehensive Economic Partnership, o que a par de uma possível admissão da China na Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership, um acordo de comércio livre de iniciativa japonesa, tendem a desvalorizar a importância económica dos EUA.Ambivalências e variações “individuais”A administração Trump, não obstante a aposta na estratégia de um Indo-Pacífico livre e aberto, representou uma perda de in-fluência na região por várias razões. Desde logo por desconsiderar a abordagem econó-mica bilateral que a China adotou em relação a cada um dos Estados-membros da ASEAN, não oferecendo nenhuma espécie de com-pensação no acesso ao mercado americano, abandonando logo em 2017 a Trans-Pacific Partnership (TPP), minimizando a impor-tância das cimeiras multilaterais e descu-rando ainda a nomeação de representantes diplomáticos. Não obstante, a Covid-19 se, por um lado, trouxe a oportunidade à Chi-na de expandir a sua influência, por outro lado não conseguiu evitar que, concomitan-temente, crescesse o nível de desconfiança face às suas intenções. A tal não são alheias várias medidas por ela tomadas que denotam a sua sobranceria em face dos vizinhos (com o Japão, a propósito das Senkaku; com as Fi-lipinas a propósito da ‘linha das nove raias’ no Mar do Sul da China; com a Coreia do Sul por causa do sistema Terminal High Altitude Area Defense; com a Austrália por um acu-mular de questões), a somar à sua presença polémica no Mar do Sul da China com im-plicações mais diretas sobre os países por ele banhados. É este o contexto em que deve ser entendido o conceito acima mencionado de hedging, uma inevitabilidade para quem tem de jogar num equilíbrio instável em que a gestão dos riscos pode implicar contradi-ções e gerir perdas e ganhos com os grandes rivais.Na variação de posições e atitudes, distin-guem-se os que assumem posições mais salientes, como o Vietname que tem uma pendência grande com a China no Mar do Sul da China, reclamando os seus direitos, confrontando-a e acusando-a de violações da sua soberania (como sucedeu com o afunda-mento de um seu navio de pescas e a criação por parte da China de dois novos distritos administrativos nas Paracel e nas Spratly em 2020). Assim se entende que um porta--aviões americano tenha visitado o país, o que já não sucedia desde que a guerra do Vietname terminou e que, ao mesmo tempo, tenham sido procuradas outras parcerias com o Japão, a Índia e a Austrália. A Indonésia, por seu turno, também tem desafiado a China no mar, nomeadamente pela reação contra a sua intrusão na Zona Económica Exclusiva nas ilhas Natuna. Nas Filipinas, também em 2020, Duterte pôs termo ao Visiting Forces Agreement, comprometendo a sua relação em questões de defesa com os EUA, e embora re-cebendo grande ajuda chinesa no combate à Covid-19 deu a conhecer a sua solidariedade com o Vietname aquando do já mencionado afundamento do navio. Também Singapura tem tido várias questões diplomáticas com a China. Os restantes países – o Cambodja, o Laos, a Tailândia, o Myanmar, a Malásia e o Brunei, estes dois últimos com pretensões no Mar do Sul da China, têm assumido uma po-sição mais suave na abordagem à China, por via da colaboração e da consulta, assim como  A administração Trump,  não obstante a aposta na estratégia de um Indo-Pacífico livre e aberto, representou uma perda de influência  na região por várias razões.A NAVEGAR ENTRE GIGANTES: O SUDESTE ASIÁTICO E O HEDGING1.29 • Conjuntura InternacionalNuno Canas Mendes Texto entregue em Dezembro de 202187JANUS 2022da recetividade à BRI. A Malásia, particular-mente, deu um impulso importante à criação do ASEAN+3 e da East Asia Summit, mas não deixou de ter uma relação no domínio militar com os EUA.E que impacto terá o AUKUS?Como escreveu Carlos Gaspar, “os Esta-dos Unidos estão a substituir o modelo das alianças bilaterais na Ásia-Pacífico por uma arquitectura multilateral de segurança do Indo-Pacífico, à imagem e semelhança do que fizeram no Atlântico no início da Guerra Fria.” O acordo dá uma capacidade acrescida à Austrália, que passa a dispor dos subma-rinos de propulsão nuclear (SSN) capazes de alcançar o Mar da China Oriental, abran-gendo um primeiro anel de ilhas, do Japão ao Bornéu, incluindo Taiwan e, deste modo, podendo neutralizar os submarinos nuclea-res chineses com mísseis balísticos (SSBN). As implicações deste arranjo poderão ser várias: desde logo um aumento potencial das atividades militares na região e uma eventual mudança na arquitetura da segurança regio-nal sem um envolvimento da ASEAN, sendo de chamar a atenção que embora o ASEAN Regional Forum possa ser promovido como instância de diálogo e cooperação, dois dos seus membros – os EUA e a Austrália – avan-çaram para o acordo AUKUS sem terem feito nenhuma ronda prévia de consultas aos seus parceiros, com a agravante de a Malásia ter acrescentado que a discussão coletiva do as-sunto exigia a recolha prévia da opinião da liderança chinesa. Abrindo caminho para ou-tras questões como a segurança submarina, a cibersegurança e a inteligência artificial, sus-cita a necessidade de diálogo, mas, de novo, as reações variaram, com países mais vocais, como Singapura, as Filipinas e o Vietname timidamente recetivos e a Indonésia e a Ma-lásia menos otimistas e a recear um acréscimo da competição militar, com eventual corrida aos armamentos. Em questões mais sensíveis, a centralidade da ASEAN ganha camadas de conceito retórico.A AUKUS funciona numa rede de dissuasão em que o Quad pode dar atenção às necessi-dades pragmáticas, por forma a evitar uma es-trutura mais pesada de segurança cooperativa que acentuasse a tónica na competição com a China. Na articulação com o Sudeste Asiá-tico, o sinal pode ser dado no fornecimento de bens públicos, vacinas à cabeça, mas tam-bém infraestruturas, educação, tecnologia, cibersegurança, abertura e transparência, palavras de ordem que postas em ação podem significar uma alternativa, ainda que esta ideia não permita aliviar o peso da tensão entre os grandes. Acresce que há temas – as altera-ções climáticas ou o combate à Covid-19 são bons exemplos – não podem ser discutidos em agendas separadas. Assim haja vontade de tornar esta cooperação uma realidade, para tornar mais leve o já citado défice de confiança e a gestão do hedging tarefa mais facilitada e com ligação a outros interlocuto-res.  Trazendo à colação o âmago da questão, Amitav Acharya comentou: “O futuro da cen-tralidade da ASEAN depende de dois fatores: a unidade e a neutralidade, ainda que não seja uma neutralidade passiva ou uma ques-tão de evitar envolvimento com qualquer um dos lados, mas antes envolvimento com todos os lados, tais como os EUA e a China, assim como com outras grandes potências com inte-resses na região”. n  Em questões mais sensíveis,  a centralidade da ASEAN ganha camadas de conceito retórico.Notas1   As citações de Kevin Rudd e de Amitav Acaharya são traduções do autor.ReferênciasEconomy, Elizabeth – “Xi Jinping’s New World Order: Can China Remake the International System?”, Foreign Affairs, January/February 2022, consultado em 7.12.2021.Gaspar, Carlos – “Três notas sobre o AUKUS”, in AUKUS  e os interesses de segurança e defesa no Indo-Pacífico, IDN brief, novembro 2021, consultado em 1.12.2021.Hoang Thi-Ha – https://www.iseas.edu.sg/articles-commentaries/iseas-perspective/2021-49-asean-navigates-between-indo-pacific-polemics-and-potentials-by-hoang-thi-ha/, consultado em 30.11.2021.Hoang Vu and Thuc D Pham – “The Shift in China-US Competition: The change from all out to “responsible” competition presents an opportunity for the Indo-Pacific”,  The Diplomat, 13 outubro 2021, https://thediplomat.com/2021/10/the-shift-in-china-us-competition/, consultado em 25.11.2021Green, Michael & Searight, Amy et al. – Power, Norms, and Institutions: The Future of the Indo-Pacific from a Southeast Asia Perspective, Results of CSIS Survey of Strategic Elites, CSIS, New York: Rowman & Littefield, 2020. 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A navegar entre gigantes: o Sudeste Asiático e o hedging

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