Influência do viés de interpretação social dos pais no viés de interpretação das crianças em idade pré-escolar: o efeito de variáveis pessoais e parentais

Abstract

Alguns modelos teóricos cognitivos reconhecem que diferentes tipos de viés cognitivo, como o viés de interpretação, desempenham um papel significativo na origem e manutenção de perturbações psicológicas, nomeadamente das perturbações associadas à ansiedade. Até onde sabemos, a maior parte da literatura que tem explorado as origens e desenvolvimento do viés de interpretação, assim como a sua transmissão intergeracional (pais-filhos), tem-se focado principalmente em crianças em idade escolar. Neste sentido, ao considerarmos a primeira e segunda infância como os períodos onde o desenvolvimento global da criança é mais rápido, pareceu-nos fundamental alongar o estudo da transmissão parental do viés de interpretação à faixa etária da idade pré-escolar. Por outro lado, se a tendência para interpretar negativamente situações ambíguas for adotada pelas crianças através da modelação do comportamento dos seus pais, um estilo de interpretação benigna transmitido pelos pais poderá ser especialmente benéfico em programas de modificação do viés de interpretação (CBM-I). Assim, esperamos que, ao alargar a crianças mais novas (idade pré-escolar) o estudo da transmissão intergeracional do viés de interpretação, possamos contribuir para um maior entendimento acerca da origem desse viés e das possibilidades de interromper o seu ciclo de transmissão. Num primeiro estudo (Capítulo I), tendo em conta que os instrumentos de avaliação do viés de interpretação em crianças em idade pré-escolar são insuficientes, desenvolvemos uma versão portuguesa do Children's Interpretation Bias Measure – Ambiguous Story-Stems (CIBM; Ooi, Dodd, & Walsh, 2015) e avaliámos as suas propriedades psicométricas. Comparativamente à versão original, introduzimos ilustrações para cada uma das oito histórias com o objetivo de auxiliar as crianças a visualizar os aspetos principais da narrativa. A análise de conteúdo das respostas às histórias do CIBM permite captar a tendência de as crianças em idade pré-escolar produzirem interpretações benignas ou malignas a partir de situações quotidianas ambíguas. A rejeição de um modelo estrutural unidimensional para estas respostas indica, no entanto, que a predisposição para produzir interpretações enviesadas não é necessariamente consistente nos diferentes domínios avaliados pelo CIBM. Desta forma, a pontuação total proporcionada por este instrumento (número de respostas que expressam interpretações negativas) deve ser encarada como um indicador cumulativo que agrega tendências para adoptar uma interpretação enviesada em diferentes domínios e não como uma medida de um traço psicológico latente unificado. As correlações positivas entre as pontuações do CIBM, uma medida alternativa de viés de interpretação e uma medida convergente de ansiedade para crianças pré-escolares (PAS) constituem um indicador satisfatório de validade do instrumento. Ao apontar para uma associação positiva entre o viés de interpretação e os sintomas de ansiedade, confirmam-se conclusões obtidas em estudos anteriores com participantes com idades desde o pré-escolar (Dodd et al., 2012) até à adolescência (Blote et al., 2014). Em suma, a abordagem metodológica utilizada – interpretação expressa ao completar histórias que retratam situações quotidianas ambíguas – parece ser das poucas possíveis que permitem investigar o viés de interpretação em crianças de idade pré-escolar. Apesar dos resultados sugerirem que este tipo de abordagem proporciona uma potencial medida do viés de interpretação nesta faixa etária, o CIBM apresenta problemas ao nível da fiabilidade (nomeadamente, consistência interna) que requerem estudo mais aprofundados sobre o modelo métrico que lhe está subjacente. Assim, os nossos resultados devem ser considerados apenas como um primeiro passo para melhorar a qualidade do CIBM devido às limitações do próprio instrumento, sendo necessário trabalho adicional para continuar a desenvolver um instrumento psicometricamente confiável para a interpretação do viés em crianças em idade pré-escolar. No segundo estudo (Capítulo II), tendo em conta a reduzida investigação conduzida com crianças mais novas, propusemo-nos a explorar de que forma a relação entre pais e filhos contribui para o desenvolvimento do viés de interpretação, e procuramos esclarecer o papel de algumas características da criança (temperamento) e dos pais (nomeadamente, estilos parentais) numa possível transmissão intergeracional deste viés. Assim, pretendemos (1) avaliar se existe associação entre a tendência dos pais interpretarem negativamente situações ambíguas e a tendência para a interpretação negativa apresentada pelos filhos em idade pré-escolar; (2) verificar se a associação entre este viés de interpretação manifestado por pais e filhos é mediada por comportamentos verbais dos progenitores que transmitam esse estilo de interpretação; (3) explorar o efeito de potenciais moderadores – nomeadamente, características da criança (temperamento, género e idade) e características dos pais (estilos parentais) – na associação entre o viés de interpretação dos pais e da criança. Relativamente ao primeiro objetivo, não encontrámos associação significativa entre o nível de viés expresso pelos progenitores (PIBM) e o nível de viés expresso pelos seus filhos (CIBM). Relativamente ao segundo objetivo, observou-se que, embora os progenitores – e sobretudo as mães – expressem parcialmente o seu viés de interpretação na situação empírica por nós utilizada para avaliar comportamentos de transmissão (concluir histórias ambíguas tal como as contariam aos seus filhos em contexto real), esse comportamento não parece traduzir-se de forma significativa no nível de viés de interpretação manifestado pelos filhos. Assim, podemos concluir que a transmissão intergeracional não se manifestou nesta amostra de crianças em idade pré-escolar. No entanto, o grau de associação entre o viés dos progenitores e dos filhos parece ser moderado pela idade da criança (crianças mais velhas partilham mais viés de interpretação com os pais) e pelo nível educacional dos pais (maior escolaridade atenua a associação entre o viés de interpretação do pai e da criança). Além disso, as características da mãe (sobretudo, o seu estilo parental) parecem também moderar a associação entre o viés de interpretação do pai e do filho, indicando que todas estas variáveis interagem de forma complexa dentro da família. Assim, apesar de grande parte dos moderadores considerados ter efeito nulo (sobretudo na associação entre viés da mãe e viés da criança), o grau transmissão intergeracional do viés (sobretudo de pais para filhos) parece ser condicionado pelas caraterísticas da criança e do seu ambiente familiar. Para além da questão da transmissão do viés de pais para filhos, neste estudo também explorámos o efeito das características da criança e dos pais nos níveis de viés. Apesar da escassez de resultados significativos, alguns deles parecem ser merecedores de atenção futura. Em primeiro lugar, identificámos efeitos da idade no nível de viés de interpretação, que sugerem ser as crianças mais velhas mais suscetíveis a este tipo de enviesamento. Este resultado, quando combinado com evidências reportadas na literatura, torna-se relevante para perceber a tendência de desenvolvimento desse viés desde a infância. Em segundo lugar, surpreendentemente, algumas das dimensões do temperamento da criança teoricamente mais relevantes para este tema (tais como a timidez, o medo, a aproximação/antecipação positiva, ou o controlo inibitório) parecem não afetar o nível de viés de interpretação expresso pelas crianças pré-escolares: embora sejam consideradas facetas do temperamento associadas à ansiedade, a inibição comportamental e a timidez poderão não estar especificamente relacionadas às bases cognitivas da ansiedade (ou seja, vieses de processamento de informação) até que as crianças sejam mais velhas e cognitivamente mais maduras. É também possível que, em crianças mais novas, tais facetas do temperamento estejam associadas a outros processos cognitivos envolvidos na ansiedade (por exemplo, atenção) e não ao viés de interpretação. No entanto, o temperamento das crianças parece influenciar a forma como pais e mães terminam as histórias ambíguas, o que reforça a possibilidade de os progenitores ajustarem aos filhos o seu comportamento verbal face à ambiguidade, talvez como estratégia preventiva de proteção de vivências negativas em situações ambíguas. Em terceiro lugar, embora não tivesse sido registado um efeito significativo, os estilos parentais permissivos e autoritários parecem influenciar o modo como os pais transmitem verbalmente aos seus filhos a forma de lidar com situações ambíguas. Por último, no terceiro estudo (Capítulo III), realizámos a primeira tentativa de adaptação do programa de intervenção Cognitive Bias Modification Training Intervention (CBMT-I; Lau, Pettit, & Creswell, 2013) a crianças em idade pré-escolar. O CBMT-I tem como objetivo reduzir o viés de interpretação em crianças através da manipulação da natureza da interação pais-filhos em situações sociais ambíguas. Emparelhámos dois grupos de vinte crianças pré-escolares com elevado viés de interpretação, sendo o seu viés de interpretação avaliado em dois momentos, antes e após a aplicação do programa de intervenção (CBMT-I). Não encontrámos diferenças entre os grupos relativamente ao nível de viés de interpretação das crianças no primeiro momento de avaliação. Enquanto um dos grupos seguiu o programa de intervenção estipulado (os progenitores treinavam com os filhos a interpretação benigna de 24 histórias ambíguas que eram lidas ao longo de quatro noites), o outro grupo era apenas exposto às mesmas histórias, sem que houvesse esforço numa interpretação benigna. Quando avaliados no segundo momento, após a intervenção do CBMT-I, observámos uma clara redução do viés de interpretação no grupo de intervenção, por comparação com o grupo de controlo, tanto na escala total do CIBM como nas duas subescalas (ameaça física e, em menor grau, ansiedade de separação). Este resultado é a extensão para uma faixa etária mais jovem dos resultados reportados em estudos anteriores com crianças em idade escolar (Beard & Amir, 2008; Cristea et al., 2015; Krebs et al., 2018; Lau et al., 2013; Vassilopoulos et al., 2009). O CBMT-I aplicado pelos pais parece assim ser um programa de intervenção eficaz na redução do viés de interpretação em crianças pré-escolares. Importa sublinhar que este resultado também apoia a hipótese da existência de uma modelação de pais para filhos do viés de interpretação. De resto, mais do que garantir um "tratamento", o CBMT-I fortalece o conceito de que é possível mudar a perspetiva do outro (negativa ou positivamente) através da transmissão do comportamento verbal e não verbal. Neste sentido, como o viés de interpretação está significativamente associado à ansiedade em crianças e adolescentes, parece-nos que crianças em idade pré-escolar que beneficiem da redução do viés de interpretação através desta intervenção poderão beneficiar em idades posteriores de uma diminuição dos sintomas de ansiedade. Concluindo, os resultados do presente trabalho contribuíram para aumentar o conhecimento sobre a transmissão e modificação do viés de interpretação em crianças de idade pré-escolar, evidenciando o papel que a influência dos pais pode ter na redução desse viés através da explicitação de interpretações benignas em situações de ambiguidade. O programa de modificação do viés com aplicação parental (CBMT-I) parece reduzir o enviesamento da interpretação nas crianças em idade pré-escolar, sendo previsivelmente um instrumento válido para prevenir o aparecimento de sintomas de ansiedade em fases posteriores do desenvolvimento. Globalmente, este trabalho vem reforçar a importância de intervenções precoces no viés de interpretação das crianças mais novas (pré-escolares).Various theoretical models recognize that cognitive biases, specifically interpretation biases, play a significant role in the origin and maintenance of some psychological disturbances, especially depression and anxiety disorders. As far as we know, the development of interpretation biases has been mostly explored in school-age children. Expanding the study of interpretation bias to younger children (preschoolers) and exploring the role parents might have in this process may help us understand the origins of such biases and how to attenuate the transmission cycle of cognitive biases between parents and children. In Chapter I, due to the lack of instruments specifically designed to assess interpretation bias in preschoolers, we developed a Portuguese Version of the Children's Interpretation Bias Measure – Ambiguous Story-Stems (CIBM; Ooi, Dodd, & Walsh, 2015) and assessed for the first time its psychometric properties. Our results indicated that this ambiguous story stems methodology could provide an interpretation bias measure in young children. However, these results should be taken as a first step toward improving CIBM quality due to methodological limitations and the instrument itself. Additional work must be done to develop a consistent psychometrically reliable and viable instrument for interpreting bias in preschool children. Given the lack of conclusive studies addressing the transmission of interpretation bias between parents and their preschool-aged children, Chapter II explores the extent of this intergenerational transmission. The effects of children's (age, gender, temperament) and parents' characteristics (age, education level, parenting styles bias) on intergenerational transmission of interpretation bias were also explored. Results suggest that although parents' own interpretation bias might be transmitted to their children through verbal expressions (namely in a storytelling context), this behavior does not globally influence preschool children's interpretation bias level. However, some child’s and parents’ attributes seem to moderate how interpretation bias might be transmitted across generations. In Chapter III, we conducted the first attempt to adapt the Cognitive Bias Modification Training Intervention (CBMT-I; Lau, Pettit, & Creswell, 2013) to reduce interpretation bias in preschool children by manipulating the nature of parent-child interaction in ambiguous situations. Results showed that parent-administrated CBMT-I proved a useful intervention program to reduce interpretation bias in preschoolers. Moreover, CBMT-I seems to support the concept that it is possible to change the other's perspective (negatively or positively) through the transmission of verbal and non-verbal behavior. The results of the present study contributed to a better understanding of the transmission and modification of interpretation bias in preschool-age children, highlighting the role that parents may play in reducing this bias. Also, the information transmitted from parents to children may have a significant, relevant role here since preschool children apparently showed weak responsiveness to parents’ negative interpretation bias but reacted favorably to an intervention based on parents' deliverance of positive interpretations when facing ambiguity. Overall, this work reinforces the importance of early interventions in younger children (preschoolers) interpretation bias

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