Soares Leite, Júlio

Portuguese

Revista Portuguesa de Cirurgia

1ARTIGOS ORIGINAIShttps://doi.org/10.34635/rpc.962	 Revista Portuguesa de Cirurgia (2022) (54):1-3É reconhecido o grande impacto do tratamento cirúrgico em várias patologias que condiciona uma enorme satisfação pessoal na atividade profissional dos cirurgiões. Contudo, apesar das virtudes desta profissão, é reconhecido que os cirurgiões têm frequentemente de enfrentar na sua prática clínica situações de acentuado stress, de se confrontar com complexas complicações cirúrgicas ou mesmo poderem ser acusados de negligência face ao insucesso do tratamento realizado. A avaliação do grau de stress crónico numa população tem sido estudada através do Malash Burnout Inventory. Este inquérito permite caracterizar o síndrome psicológico de burnout, que consiste no sentimento de exaustão emocional sentida com maior ou menor frequência; esse inquérito com 22 perguntas também permite avaliar o grau de despersonalização e de satisfação na realização profissional. Tem sido reconhecido que o burnout pode afetar de forma significativa a capacidade de trabalho profissional bem como a qualidade de vida pessoal e familiar, podendo conduzir a grave distúrbio psicológico. A atenção a este problema levou à aplicação do inquérito Malash a 24922 Fellows do American College of Surgeons, respondendo 7905 (32%) e tendo revelado que 40% referiram burnout BURNOUT NOS CIRURGIÕES PORTUGUESES  – UM DISTÚRBIO PSICOLÓGICO ENDÉMICO?BURNOUT IN PORTUGUESE SURGEONS  – AN ENDEMIC PSYCHOLOGICAL DISORDER?JÚLIO SOARES LEITEProfessor Catedrático Jubilado de Cirurgiae 30% alguns sintomas depressivos1. Estes Fellows na sua prática clínica trabalhavam em média 60 horas por semana e tinham urgências noturnas 2 vezes por semana. Noutro inquérito efetuado a internos de cirurgia, também nos Estados Unidos, 69% referiram burnout2. Entre nós foi feita uma avaliação do grau de satisfação dos internos com a especialidade que escolheram e verificou-se que os internos de cirurgia geral tiveram das menores taxas de satisfação com a especialidade escolhida, quando comparada com outras como otorrinolaringologia, ginecologia-obstetrícia, anestesiologia, neurologia ou oftalmologia3. Estes dados também explicam as opções preferenciais atuais dos internos da especialidade, deixando de ser a cirurgia geral a opção dos internos com classificações mais elevadas. Nos anos 70-80 os internos com inclinação para as áreas cirúrgicas escolhiam preferencialmente a cirurgia geral pela sua maior abrangência e diversidade técnica. Quais as causas que fizeram modificar essas escolhas? Nas últimas décadas os jovens médicos, durante o internato geral, verificavam que na cirurgia geral existia número elevado de serviços de urgência noturnas com sobrecarga de trabalho indiferenciado, dificuldade REFLEXÃOCanto dos EditoresJúlio	Soares	Leite2É reconhecido que em todas as profissões se encontrarão taxas elevadas de burnout. Sem deixar de reconhecer a importância deste problema, custa-me acreditar que a grande maioria dos cirurgiões gerais tenha tão alta exaustão emocional nesta profissão tão motivante, com constantes inovações e melhoria progressiva nos resultados obtidos, associada à recom- pensa na gratidão transmitida pelos nossos doentes.As principais causas que nos parecem gerar a exaustão emocional, particularmente nos internos, são 1) o caos das urgências, 2) o ambiente potencial- mente tóxico no bloco operatório, 3) a ocorrência de complicações cirúrgicas e 4) o trabalho num serviço sem adequadas normas científicas. 1) A afluência crescente de doentes nas urgências necessitará de medidas estruturais. A equipa cirúrgica deverá ser reduzida para atender apenas a doenças do foro cirúrgico e os médicos generalistas ou internos gerais deverão resolver a maioria das situações clínicas. Perante tal caos perde-se a noção da riqueza formativa dos diversos casos problema e a satisfação na sua solução partilhada pelos internos e pelos cirurgiões.2) Com muita frequência vive-se no bloco opera- tório um ambiente de ansiedade que se transmite a toda a equipa médica, internos, estudantes e enfermeiros num clima compe- titivo e de excessivo stress onde ninguém tem direito a fazer perguntas perante as dúvidas. Perde-se a importância dos aspetos formativos em detrimento de guerras pessoais e da pressa em terminar a intervenção. Será útil criar normas orientadores tais como uma pequena reflexão com toda a equipa no início da intervenção, considerando os objetivos da intervenção, bem como a facilitação para colocarem as dúvidas, e no final pequeno debriefing com discussão livre sobre os proble- mas eventualmente ocorridos. Será necessário que a cirurgia decorra com segurança técnica e com bom ambiente psicológico.de progressão técnica e incapacidade de adquirirem competência com autonomia em diversas áreas. A estes factos acrescem as baixas perspetivas de sucesso económico nesta especialidade e de pior qualidade de vida quando comparada com outras especialidades cirúrgicas. Em 2016 foi também efetuado um inquérito sobre burnout aos cirurgiões gerais Portugueses através do site da SPCIR e responderam 219 (27% dos inquiridos). Nesta série, 142 pertenciam ao sexo masculino e 146 eram cirurgiões, sendo 73 internos de cirurgia. Registou-se burnout em 65%, aspetos de despersonalização elevada em 13% e referência a fraca realização profissional em 21%4. O burnout foi mais frequente nos cirurgiões do sexo feminino (79,2% vs 57,7%), bem como nos internos comparativamente aos cirurgiões (84,3% vs 55,4%).Estes resultados revelam que este problema é aparentemente ainda mais grave entre nós do que nos Estados Unidos. No entanto, na catalogação de burnout na série Portuguesa considerou-se o desvio grave e moderado na escala, enquanto no estudo Americano apenas o desvio grave pelo que não se pode afirmar que existam grandes diferenças. Não existe análise sobre a taxa de burnout efetuada anteriormente aos cirurgiões Portugueses mas poderá presumir-se, pelos indicadores da preferência dos internos, que o mal-estar dos cirurgiões é real e que se tem vindo a agravar ultimamente. Estaremos então perante um problema psicológico de burnout endémico nos cirurgiões portugueses? Pelo menos não será de ignorar estes resultados e mesmo a nível mundial há reflexos indiretos preocupantes, tais como o da desistência do internato de cirurgia que foi de 18% nos Estados Unidos, 22 a 30% na Escócia e 15% nos Países Baixos5. Na análise deste problema, as razões invocadas pelos Internos para a desistência foi a referência a má qualidade de vida, os problemas familiares ou os atritos pessoais com os formadores. Independentemente dos problemas pessoais e dos reflexos nos serviços deverá ser sinalizado que o treino cirúrgico tem um custo anual elevado, calculado em 80000 dólares5.Burnout	nos	Cirurgiões	Portugueses	–	Um	distúrbio	psicológico	endémico?3A geração mais nova como a geração Z, nascida após 1995 ou a geração Y, nascida após 1982, olham para a escolha cirurgia geral como uma especialidade com horários de trabalho que ultrapassam frequente- mente os estipulados, urgências cansativas, má qualidade de vida, baixa probabilidade de bons incentivos económicos e perceção de elevada taxa de burnout nos internos de cirurgia. Contudo, acho que continuará a haver lugar para que vários jovens queiram continuam a ser Bons Médicos e Bons Cirurgiões, ter o prazer de tratarem os seus doentes com eficácia, olhando criticamente para o exemplo dos seus mentores, adotando uma postura científica na análise dos casos clínicos, melhorando sempre a performance técnica, frequentemente associada a inovações tecnológicas. Em suma, há que reconhecer precocemente a tendência para a exaustão emocional, procurando corrigir vários dos problemas aponta- dos e associar hábitos de vida saudável. Contudo não há uma fórmula mágica que permita obter sucesso em qualquer carreira profissional. Olhemos para o passado com o realismo do dever cumprido e para o futuro com enorme esperança!Palavras-chave: Burnout, Cirurgiões Portugueses.Ketwords: Burnout, Portuguese Surgeons.3) A ocorrência de complicações severas coloca com frequência o cirurgião em grande stress emocional e é clássico considerar-se que poderá ser também a “segunda vítima”. As complicações são inevitáveis no âmbito da cirurgia geral! Será recomendável que o cirurgião ou o interno discuta abertamente com os seus colegas o problema. Mas será necessário que o serviço tenha uma postura científica nas reuniões de morbilidade e mortalidade semanais, que deverão envolver todo o serviço, para se encontrarem as causas e a sua prevenção. 4) Trabalhar num serviço organizado de acordo com normas científicas será, na nossa perspe- tiva, um elemento preventivo da exaustão emocional na equipa cirúrgica. Mas o ideal será viver durante meses num Serviço hospitalar modelar, habitualmente fora do país, tal como acontecia há várias décadas e desta forma identificarem-se as mudanças necessárias. As divergências são inevitáveis e deverão ser resolvidas em ambiente democrático, com argumentos científicos. Os diretores e coorde- nadores dos diversos serviços e unidades deverão ter elevada qualidade científica e técnica para liderarem com eficácia a assistên- cia aos doentes, a formação médica e a investigação clínica.REFERÊNCIAS1 Shanafelt T, et al. Burnout and Career Satisfaction Among American Surgeons. Ann Surg 2009;250:463-471.2 Elmore L, et al. National survey of burnout among US general surgical residents. J Am Coll Surg. 2016;223:440-451.3 Martins MJ, e col. Satisfação com a Especialidade entre os Internos da Formação Específica em Portugal. Acta Med Port 2015; 28(2):209-221. 4 Fernandes M, Leite J, Madeira N, Relvas J. Serv Cirurgia A, Psicologia, Psiquiatria – CHUC. Comunicação oral. 2016.5 Nally D, et al. Attrition from a National Surgical Training Program. Ann Surg 2022;275:621.Correspondência:JÚLIO SOARES LEITEe-mail: julio.s.leite@gmail.com Data de recepção do artigo:10-02-2023Data de aceitação do artigo:19-3-2023

BURNOUT NOS CIRURGIÕES PORTUGUESES – UM DISTÚRBIO PSICOLÓGICO ENDÉMICO?

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