Gomes, Heitor Rocha

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 Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 73 ARQUIVOS DA MEMÓRIA FOTOBIOGRÁFICA DE ESTUDANTES: RETRATOS, NARRATIVAS E COTIDIANOS DA ESCOLA Heitor Rocha Gomes (Pós Crítica/UNEB) 17 Resumo: Este trabalho tem como tema “Arquivos da memória fotobiográfica de estudantes: retratos, narrativas e cotidianos da escola”, objetiva refletir sobre como estudante é percebido/invisibilizado no cotidiano escolar, mediante registros fotográficos de cenas cotidianas, dentro e fora das salas de aula. O primeiro capítulo trata da trajetória autobiográfica do autor em quatro seções. O segundo, discute a necessidade de visibilização e produção de sentidos com/dos estudantes ao mesmo tempo em que produz desdobramentos que viabilizem inquietações relacionadas ao problema principal da pesquisa, isto é: como os estudantes poderiam perceber e narrar, a partir dos registros fotográficos, a si e ao outro nas cenas do cotidiano escolar? O terceiro capítulo “Fotobiografia e educação”, tece argumentos sobre as questões teóricas e de produção de sentidos relevantes para a efetivação da pesquisa, entre as quais, de maneira geral destaca-se: narrativas do estudante no contexto da escola; fotografia e recorte imagético da realidade; fotobiografia, subjetividades e a constituição da identidade do sujeito.  Palavras-chave: Fotobiografia. Cotidiano escolar. Narrativas. INTRODUÇÃO Esta pesquisa nasceu de uma inquietação pessoal a respeito de como o estudante é percebido no cotidiano da escola em que atuo como coordenador pedagógico. A partir das experiências na educação não-formal, aprendi sobre a relevância de ter como mote principal as necessidades de aprendizagens e as experiências de vida de todos e de cada um dos educandos. O ensino nasce daquilo que a escola entende que é necessidade de aprendizagem para todos, ignora-se o contexto social, cultural, político em que a educação oferecida acontece, e, principalmente, ignora-se a necessidade de aprendizagem de cada um em detrimento de um suposto conhecimento da necessidade de aprendizagem geral. As experiências e estudos no âmbito da educação, balizaram as perspectivas e sentidos dos desdobramentos desta pesquisa que tem como tema geral: “Arquivos da memória fotobiográfica de estudantes: retratos, narrativas e cotidianos da escola”. O trabalho está dividido em quatro capítulos.  No primeiro, em forma de memorial, apresento a minha trajetória em quatro seções. O segundo capítulo: Tecendo os caminhos metodológicos da pesquisa, discuto a necessidade de visibilização e produção de sentidos com/dos estudantes ao mesmo tempo em que me esforço para produzir desdobramentos que viabilizem inquietações relacionadas ao problema principal da pesquisa, isto é: como os estudantes poderiam perceber e narrar, a partir dos registros fotográficos, a si e ao outro nas cenas do cotidiano escolar?                                                            17  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da Bahia (Pós-Crítica/UNEB), linha de pesquisa Literatura, produção cultural e modos de vida. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Berenice da Cruz.  Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 74 No terceiro capítulo “Fotobiografia e educação”, teço argumentos sobre as questões teóricas e de produção de sentidos relevantes para a efetivação da pesquisa, entre as quais, de maneira geral destaco: narrativas do estudante no contexto da escola; fotografia e recorte imagético da realidade; fotobiografia, subjetividades e a constituição da identidade do sujeito. Ao definir o enfoque para este trabalho, além da pretensão de produzir reflexões e caminhos que ampliem a percepção das expressões do estudante na sua trajetória pessoal de constituição de identidade, espero demonstrar a potência criativa de uma educação que, nos seus processos de aprender e o ensinar parte das necessidades, desejos e produção de sentidos dos seus estudantes. Na fotobiografia a produção de sentidos a partir das etapas, das decisões tomadas para realizar um recorte fotográfico da realidade e por meio da composição (aquilo que incluí ou exclui da fotografia) cria e ficcionaliza o mundo, gerando condições para que o sujeito possa realizar exercícios oportunos de apropriação de si, percebendo-se e situando-se nas decisões que tomou, a partir do que sentiu e do como imaginou. Nessa condição ele (aluno) poderá, diante da fotografia, tomar posse da própria experiência. Esse exercício é feito conforme os próprios crivos do sujeito implicado na atividade. É ele quem estabelecerá o que merece sua atenção, antes e durante o processo de fotobiografização.  Claro que na condição de sujeito, situado em um determinado contexto, as decisões que toma e as atitudes que tem diante das leituras que faz, estarão sob o efeito do contexto a que pertence, e, que de certa maneira o formou. Mas, no final das contas, é o sujeito na sua singularidade que decide e age. A expectativa, é que o exercício consciente de ficcionalizar a realidade e assumir-se como autor ou co-autor dessa ficção, sirva como referência pessoal que se desdobrarão em outros momentos de sua vida e que espontaneamente tornem-se práticas necessárias de apropriação de si.  Imaginemos, portanto, um estudante que fotografará livremente cenas da escola, tendo recebido como único critério, incluir no registro uma ou mais pessoas. Ele receberá uma câmara e vagará pelo pátio da escola. O estudante anda tranquilamente até que de repente sua atenção é fisgada por uma cena. É como se rapidamente acontecesse um vislumbre e a cena vista fosse recriada em sua mente. Ele aproxima-se, levanta a câmara, enquadra, compõe a cena no visor e finalmente, percebendo que ali está contido tudo que precisa, pressiona o disparador e a cena desejada foi capturada. Essa dinâmica, em suas minúcias, poderia ocorrer em breves segundos ou minutos em que o estudante estivesse envolvido pela tarefa. Independente do tempo cumprido, estariam presentes ali as três formas de consciência descritas por Maheirie. Naquele instante o estudante imagina, percebe e toma consciência do ato realizado. Esse exercício de junção de sentidos será retomado no momento em que o estudante colocar-se diante das fotografias reveladas  Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 75 para uma nova compreensão do seu existir no mundo através do recorte fotográfico promovido pela escola. Como educador social a minha formação estava focada no aprender/ensinar a ser e conviver partindo do conhecimento prévio de mundo do educando, de sua família e comunidade. Na rotina escolar tradicional aprendemos que o foco de atenção do educador seja em tudo que esteja fora do estudante, isto é, no currículo, nos livros didáticos, nos saberes das professoras. Na minha concepção de educador social, o mais importante é perceber o que cada menino ou menina é ou que queira ser.  Numa concepção linear de escola o planejamento se dá na perspectiva de alcançar resultados eficientemente igualitários. Em se tratando de algum fracasso pessoal, o problema é atribuído à deficiência de aprendizagem e não nas condições, motivações e metodologia de ensino. Como uma escola que ignora quem são seus estudantes, o que querem, o que precisam e o que desejam, pode cumprir com a sua tarefa de cuidar do desenvolvimento escolar das novas gerações? Se a escola não tem por definição esta tarefa, ela se tornará mais uma máquina de produção e perpetuação de injustiças e desigualdades. Essa preocupação de que o aluno se torne sujeito de sua história, fica evidente na fala da Professora Doutora Nanci Franco quando diz: Os alunos têm um desconhecimento da sua própria história, o que dificulta o seu processo de construção de identidade, mina sua atuoestima e consequentemente interfere nas relações estabelecidas nos diversos grupos socais; no cotidiano percebe-se que ao adolescente negro(quer seja garoto ou garota) sofrem marcadamente a influencia das ideias racistas que são veiculadas no imaginário social e a depender da situação se transformam em morenos, mulatos ou mesmo negros; existe uma preocupação intensa com a aparência, especialmente com o cabelo; presença de violência física e verbal; há um descompasso entre o vivido/construído pelos alunos e o discurso/ação implementados pela escola e finalmente a diversidade étnico-cultural é vista como inferioridade, quem está fora do padrão estabelecido ocupa posições menos privilegiadas (FRANCO, 2008, p. 12).  Em contextos como esse, a escola, de maneira geral, na sua dinâmica, privilegia o ‘em-si’, a dimensão objetiva dos sujeitos e desconsidera as motivações particulares dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar. Tratando especificamente do estudante em seus primeiros anos na escola de Ensino Fundamental, o que tenho observado é que tudo que é objeto de desejo ou que se traduz em necessidades básicas das crianças e adolescentes tem pouco ou nenhum valor para o currículo escolar. Quando o que tem sentido para a infância e adolescência na escola é entendido como recurso, estratégia didática com finalidade de viabilizar o currículo estabelecido. Dessa forma, se aquilo que é subjetivo dificilmente cabe na dinâmica escolar, se o estudante não tem como expressar, exercitar suas dimensões subjetivas e objetivas como poderá, dentro do cotidiano escolar, participar de situações que contribuam com a constituição da sua identidade em formação?  A fotobiografia funciona estrategicamente como recurso de expressão pela produção de discursos, e esses, no contexto deste trabalho, se farão por meio de narrativas que ultrapassam os  Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 76 limites de questões normalmente praticadas na escola, e giram em torno de: o que, onde, como e com qual finalidade se fez. Os comentários dos estudantes transbordam por serem carregados com as perspectivas que o sujeito tem de si mesmo, do mundo e da sua forma de significá-los, revelando suas dúvidas, certezas e opiniões. No discurso sobre o objeto fotográfico existe algo que chamamos de construção, descoberta auto-afirmação diante de si e do outro. A respeito dessa reconstrução de si e da importância das narrativas, Áurea Pereira nos diz que: Nessas narrativas, os sujeitos demarcam espaços e se reconstroem a partir das lembranças e, à medida que se defronta com o texto narrado, ele se percebe enquanto autor e narrador de uma história que reflete a sua história de vida, suas memórias, a sua materialização na narrativa. Essas histórias perpassam pela voz, corpo, gestos, pausas, expressões de suspense etc. A força da tradição oral, enquanto um patrimônio dessa comunidade, se concretiza através deste conjunto de valores sociais, culturais, religiosos e educacionais que são veiculados entre gerações (PEREIRA, 2008, p. 167). Assim, entendemos que o “falar sobre” está presente em todas as etapas. Nele existe uma pré-definição sobre o que será feito, que funciona como um roteiro provocativo que inicialmente, gera e motiva a ação dos estudantes que participam da pesquisa. Esse roteiro será preenchido com todas outras questões que envolvem a produção e a leitura da fotografia. Como o momento de leitura da fotografia ocorrerá no coletivo do grupo envolvido, a expectativa é que as narrativas saiam do campo da mera descrição e decodificação linear das imagens, e se insira no campo da reflexão do ‘Eu’ que fala. Conforme a proposição de Pereira (2008), o que se espera é que os autores narradores se percebam como ficcionistas do real, e que a imersão se dê de tal forma, que produza novos atos criativos capazes de revolucionar suas formas de enxergar a si, ao outro e o cotidiano retratado. No atual estágio da produção do material da pesquisa em andamento, que será tratado nas perspectivas dos estudantes, além da fotografia, outro elemento passou a colaborar com a produção de sentidos sobre o cotidiano da escola, o vídeo. Isso porque tanto os estudantes quanto os professores acostumaram-se com o constante registro que faço de situações corriqueiras da escola, algumas também permito que manuseiem a minha câmera fotográfica depois de algumas orientações e advertências sobre o que e como fazer. Em uma dessas situações, no momento em que eu filmava o recreio para uma posterior conversa com os professores sobre os inúmeros incidentes que aconteciam neste, uma estudante me pediu para gravar, como de costume coloquei a correia da câmera no seu pescoço, orientei como segurá-la e adverti que não devia passar o cuidado da mesma para outra pessoa sem minha autorização. Quando em casa passei a assistir o resultado da filmagem me surpreendi com o que vi. Primeiro que a estudante tinha sete anos e algumas situações ela filmou de baixo para cima. Segundo ela registrou meus gritos impacientes nos momentos das minhas conduções das brincadeiras durante o recreio. Terceiro, entre os seus colegas ela era mais uma, em um determinado momento era possível só ver ela prensada entre seus colegas maiores do terceiro, quarto e quinto ano, uma visão do cotidiano da escola que eu jamais teriam, quinto, as constantes  Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 77 observações que ela fazia aos colegas que, no seu entendimento estavam dizendo ou fazendo algo ilegal: Professor Heitor vai ver viu! Depois dessa primeira experiência passei a pedir que regularmente as participantes da pesquisa, duas estudantes do quinto ano vespertino, fizessem ou orientassem gravações em vídeo do recreio. A produção de vídeo ampliou as possibilidades do dizer sobre o cotidiano da escola. A condução espontânea da câmera pela estudante do segundo ano fez-me refletir sobre até que ponto eu estava ouvindo de fato a voz das colaboras da pesquisa, até que ponto de minhas orientações a fotografia dos cotidianos da sala e dos recreios não impediam que elas me dessem ideias mais próximas do seu universo infantil. Dessa forma, a fotografia em movimento acrescentou ao atual projeto de pesquisa, além de novas perspectivas outra dinâmica. Nesta será possível as estudantes produzirem sentidos a partir do movimento, dos sons, dos tempos, dos ritmos. Em paralelo poderão associar dissociar, acrescentar, retirar conceitos, sentidos antes abordados na fotografia como imagem estática. Poderiam se perguntar o que há de movimento nas cenas fotografadas e o que há de estático nas cenas filmadas.  Provisoriamente posso especular que o projeto de pesquisa Arquivos de memória fotobiográfica: retrato dos cotidianos da escola terá muito a revelar sobre quais sentidos podem existir nas cenas que constituem os cotidianos da escola, notadamente como os adultos pouco figuram como referencia nas imagens e muito figuram nos seus discursos sobre o que se pode ou não fazer. Mesmo que precipitadamente adiantando as considerações finais deste trabalho inconcluso, é possível especular que a escola pouco é vista como lugar de novas e significantes aprendizagens e os adultos da escola como instigadores de produções criativas. O que Agamben afirma sobre a ciência moderna parece se incorporado bem as rotinas da escola:  A ideia de uma experiência separada do conhecimento tornou-se para nós tão estranha a ponto de esquecermos que, até o nascimento da ciência moderna, experiência e ciência possuíam cada uma seu lugar próprio (2005, p. 25). Isso posta assume que a pesquisa em andamento terá como um dos seus princípios orientadores, o desafio de criar condições oportunas para que os estudantes nas etapas de desdobramentos do trabalho possam colaborar com suas experiências, com suas perspectivas, expectativas, histórias de maneira que cada cena percebida e registrada possa de fato ser fotobiografada, impregnada com as experiências sujeitos que as produziram. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dessa forma, a fotobiografia, funcionará como oportunidade de auto-definição do sujeito e de auto-apropriação no momento em que nela dá-se o encontro das dimensões que o constituem: a subjetiva e objetiva. Após esta exposição, três suspeitas me encaminham para o quarto capítulo, a saber: a primeira suspeita é que no seu máximo a fotobiografia como estratégia, não poderá  Anais Seminário Interlinhas 2018.1 — Fábrica de Letras | 78 pretender ser mais que um exercício, considerando que é o sujeito que dará para ela ou não sentidos. Pois é nele que a experiência terá ou não profundidade.  A segunda suspeita é que para alcançar o âmago do sujeito de maneira que venha a se tornar uma experiência válida, a fotobiografia, precisaria se tornar necessidade de objetivação para o sujeito, isto é, constituir-se num projeto que reforçasse a ideia de alcançar o desejado; ou seja, algo buscado e vivenciado espontaneamente pelo estudante. E finalmente a terceira suspeita é de que essa dinâmica, além de não linear, comporta todos os riscos, desconfortos, prazeres, frustrações no espaço-tempo existente entre o desejar e o realizar; visto que a proposta da fotobiografia estará vinculada à produção de narrativas e auto-narrativas com a finalidade de, pela reflexão e o dizer de si, o sujeito possa criar caminhos de escape da alienação do próprio processo de constituição de sua identidade e subjetividade. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Belo Horizonte: UFMG, 2005. BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da. 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