Barboza Plínio dos Santos, Carlos Alexandre

Guimarães, Sílvia

Nasuti, Stéphanie

Portela, Cristiane de Assis

Portuguese

Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

1PÓS, vol. 16, nº 2, 2021ApresentaçãoFazer antropologia em tempos pandêmicos: narrativas de povos e comunidades tradicionais e de periferias ur-banas sobre a pandemia Covid-19Doing anthropology in pandemic times: narratives of tradition-al peoples and communities and urban peripheries about the Covid-19 pandemicHaciendo antropología en tiempos de pandemia: narrativas de pueblos y comunidades tradicionales y periferias urbanas sobre la pandemia de Covid-19Sílvia Guimarães*Carlos B. Plínio dos Santos**Cristiane de Assis Portela***Stéphanie Nasuti****Apresentamos este dossiê com o propósito de documentar e refletir sobre as ações estatais na pandemia da Covid-19 e, mais importante, com o propósito de trazer as reações dos coletivos oriundos de comunidades tradicionais ou das periferias urbanas a este novo adoecimento. A prática etnográfica aqui dinamizada e a urgência em refletir sobre a atual emergência sanitária estão atre-* Coordenadora do Laboratório Matula, professora do Departamento de Antropologia-UnB e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB).** Coordenador do Laboratório Matula, professor do Departamento de Antropologia-UnB e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB).*** Professora do Departamento de História-UnB e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB) e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Cauim.**** Professora do Centro de Desenvolvimento Sustentável e do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT/UnB).Dossiê: Apresentação2PÓS, vol. 16, nº 2, 2021ladas a um movimento social científico que nos situa ao lado dos povos e comunidades tradicionais e de grupos periféricos. Fazer pesquisa é também pensar em suas ações políticas e, para nós, esse fazer deve estar pautado por epistemologias indígenas, do povo negro e das periferias. Também, está pautado por pensar em ciên-cias plurais que, no nosso caso, pretende dar vazão a novas episte-mes. Com esse olhar, este dossiê tem como intuito movimentar o fazer etnográfico nestes tempos e enfatizar a importância de mer-gulharmos na vida profunda dos rincões do Brasil, na forma como a macropolítica reverbera na micropolítica das vidas. Este dossiê reúne peças que destrincham as narrativas dos sujeitos e coletivos sobre as ações estatais que sobrevieram e interpretações cosmo-lógicas sobre o novo coronavírus. Na perspectiva de lançar mão de estratégias narrativas que permitam trazer as visões singulares dos/as envolvidos/as, este dossiê conta com três formatos ou pe-ças, sendo assim composto por três entrevistas, duas conferências e quatro artigos.Os artigos reunidos neste dossiê tratam de histórias sobre vidas, lutos e lutas, que se entrelaçam às histórias das autoras e dos autores com os locais de sua existência e de seus vínculos com os coletivos. Em tempos pandêmicos, sentimos que o sofrimento social pode vir tanto por parte de uma ação ou agenda estatal quan-to de processos rotineiros de opressão ordinária, como analisam Kleinman, Venna Das e Lock (1996). Vivenciar uma pandemia no mundo contemporâneo entre as comunidades tradicionais (indíge-nas, quilombolas e de terreiros) e/ou moradores de periferias urba-nas e grupos periféricos e sentir a dor provocada pela Covid-19 se somam a lidar com a dor vivida nas memórias de uma história co-lonial que se perpetua em uma violência sem fim, como nos ensina Frantz Fanon (1968). Mas, o psiquiatra e filósofo da Martinica, também nos ensina que apesar do colonizador forçar o sentido da 3PÓS, vol. 16, nº 2, 2021morte e da não existência daqueles que pretende colonizar, deve-mos ouvir sobre a existência e práxis anticolonial. Assim, manter-se vivo é resistência. Essa se faz presente nas estratégias criativas de cuidado e apoio mútuo que esses cole-tivos acionam e nos ensinam sobre a urgência de novas possibili-dades de vida. Deste modo, os trabalhos aqui reunidos pretendem discutir as implicações da pandemia associadas às ameaças colo-niais, ao mesmo tempo que buscamos reconhecer formas de resis-tência e fortalecimento dos laços que unem os coletivos.As autoras e autores envolvidos fazem parte do Laborató-rio Matula - Sociabilidades, Diferenças e Desigualdades, vincula-do ao grupo de Pesquisa do CNPq e ao Departamento de Antropo-logia da Universidade de Brasília. Nosso grupo de pesquisa surgiu com a proposta de ouvir, observar, aprender e aliar-se às experi-ências de vivenciar uma pandemia a partir das narrativas de povos e comunidades tradicionais e de moradores de periferias urbanas. Percebemos a importância de entender os adoecimentos envolvi-dos por sofrimentos sociais provocados e, igualmente, compreen-der como as teias de cuidado levam a estratégias de resistência e percepções sobre os serviços e políticas de saúde. Somos profes-sores/as, mestrandas/os, doutorandos/as e, também, lideranças que representam seus coletivos. E contamos com o apoio do Edital COPEI-DPI/DEX nº 01/2020, da Universidade de Brasília.O enfoque está na contra-narrativa apresentada por estes povos e comunidades para compreender a constituição do adoeci-mento em seus territórios, como argumenta Byron Good (1994). A relação entre história e experiência transparece nos relatos, na seleção e na organização de seus próprios dados epidemiológicos diante da inescrupulosa subnotificação do governo federal, o que nos permitiu compreender o que é significativo para os grupos so-ciais e ver a interação entre o macro e o micro a fim de transitarmos 4PÓS, vol. 16, nº 2, 2021da história local, cotidiana ao mundo globalizado (GOOD, 1994). Hoje, essas comunidades são atingidas de múltiplas for-mas com o advento da pandemia, pois vivem justamente em um contexto onde o governo federal é explicitamente contrário aos di-reitos conquistados por esses coletivos, com uma gestão que pre-tende pôr fim às suas vidas ou fazê-los se integrar a uma suposta sociedade nacional. Esses coletivos vivem o avanço de garimpei-ros, madeireiros e grileiros sob seus territórios. Somado a isso, o governo federal provoca o desmonte das políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS), subestima a ciência, minimizando a gravidade do novo coronavírus, e não cria ações de prevenção da doença e promoção da saúde eficientes para contenção do vírus, assim como não reconhece a potencialidade da Atenção Básica à Saúde (ABS)1 para superação da proliferação exponencial do coronavírus na realidade brasileira. Esse cenário crítico revela a total desassistência por parte do Estado na vida das pessoas mais vulnerabilizadas e trabalhadoras e conecta as sequelas corporais deixadas pelo adoecimento da Covid-19 com as sequelas sociais do luto, das famílias rompidas, das rupturas biográficas vividas, da fome, do desmonte dos serviços de saúde, da invasão dos ter-ritórios.Além do adoecimento, a pandemia da Covid-19 tem causa-do temor ao reacender a memória de pandemias anteriores (DIAS & GUIMARÃES, 2020). Uma das consequências devastadoras em territórios indígenas e quilombolas tem sido a morte de gran-des lideranças idosas, guardiões e guardiãs de saberes e conheci-mentos. Mas, também, o falecimento de bebês (GUIMARÃES, 2020 e 2021), fragilizados com a presença de outros adoecimen-tos, como pneumonia e malária, em seus territórios que não são contidos pelos serviços de saúde. Essas mortes entre gerações se apresentam como uma 5PÓS, vol. 16, nº 2, 2021grande preocupação para as comunidades. Diante desse cenário, esses povos estão criando processos autogestados de controle da pandemia e fazendo denúncias sobre a ausência estratégica do go-verno federal por meio de suas organizações locais (VERON & GUIMARÃES, 2020). Ao mesmo tempo, movimentam suas cos-mologias e enfatizam a importância de relações éticas que devem cuidar dos sujeitos que habitam aquilo que o ocidente denomina de natureza. Iniciamos a apresentação deste dossiê com as conferências de dois indígenas antropólogos, Jósimo Puyanawa e Francisco Apurinã, os quais tratam das ciências indígenas e como essas ex-plicam a emergência do novo coronavírus.Na conferência do antropólogo Jósimo Puyanawa minis-trada ao Laboratório Matula, o pesquisador apresenta as narrativas dos anciãos do seu povo e essas informam sobre a pandemia da Covid-19. Os mais velhos relatam como almas/serpentes veneno-sas invisíveis se espalharam pelo mundo e podem ser esse inimigo invisível que enfrentamos. As soluções para esta pandemia e outros problemas, como as mudanças climáticas, podem estar no encon-tro de saberes das ciências indígenas, que, historicamente, foram menosprezadas com o conjunto de outras ciências e epistemolo-gias. O antropólogo Francisco Apurinã, que também ministrou uma conferência ao Laboratório Matula, enfatiza esta urgência de que é preciso reconhecer o protagonismo da ciência indígena no mundo, pois seus modos de manejar a floresta, o cuidado no plan-tar, colher, coletar, caçar e pescar sustentam a convivialidade entre seres visíveis e invisíveis, humanos e não-humanos. Um conheci-mento que aponta caminhos para a construção de redes de cuidado e solidariedade interespécies. Seguimos com o artigo de Iury Magütagü, que trilha o ca-minho da Covid-19 em seu território e segue até a cidade de Ma-6PÓS, vol. 16, nº 2, 2021naus, onde também vivem os Magütagü. Estratégias de cuidado Magütagü são desenhadas no território e na cidade, enfrentando a violência da morte em tempos pandêmicos. Por sua vez, Bárbara do Nascimento e Welitânia Rocha nos levam pelas estratégias de cuidado criadas pelas comunidades tradicionais da microrregião do Bico do Papagaio para lidar com a pandemia do novo corona-vírus. Relações de poder imbricadas nos processos coloniais con-temporâneos afetam a vida dos povos e comunidades que vivem nesta microrregião. Essas relações de poder são constantemente reestabelecidas e intensificadas por meio do capitalismo neolibe-ral e se acoplaram à pandemia para fazer avançar sobre territórios tradicionais “projetos de desenvolvimento” que, para esses povos, são verdadeiros projetos de morte. Carlos Alexandre B. Plínio dos Santos nos traz uma breve reflexão da saúde da população negra, sobretudo quilombola, e de políticas públicas de saúde voltadas para esse segmento desde o Brasil colonial e imperial, na relação do Estado com a saúde da população negra escravizada. Além do passado mais remoto, o autor se detém em décadas mais recen-tes, levando-nos desde a Constituição de 1988 até o tratamento no atual contexto da pandemia Covid-19 com enfoque na população negra. O artigo de Joaquim Vasconcelos, Bruna Nobre e Izabel Zanetti traz a perspectiva das mulheres catadoras de materiais re-cicláveis em seu território, demonstrando as formas de cuidado na lida cotidiana referentes às implicações desta pandemia. Buscam compreender os dilemas vividos pelas trabalhadoras em um mo-mento de crise na periferia urbana de Ceilândia, no Distrito Fede-ral, quando viveram a suspensão do trabalho. O artigo coloca em relevo ainda as ameaças sofridas em relação ao fim do trabalho da catação, a falta de assistência social para manterem suas vidas e como se organizaram contra esses ataques. A entrevista realizada por Zane do Nascimento com a li-7PÓS, vol. 16, nº 2, 2021derança quilombola e acadêmica Elionice Conceição Sacramento e a jovem liderança quilombola Danilo Sodré Teixeira de Santos trata do entrelaçamento da pandemia da Covid-19 com o racismo institucional e como ela agravou esse último. Assim, asseverou--se a morosidade da demarcação definitiva dos territórios quilom-bolas, o que impossibilita milhares de comunidades de acessar políticas públicas. As duas lideranças, em sua análise, entendem que está em curso o aumento expressivo de violação de direitos neste período da pandemia, atingindo territórios, associações, en-tidades e lideranças, além de outras formas de opressões como despejos, mortes violentas, perseguições e a criminalização de pessoas e movimentos na esteira do autoritarismo e genocídio vi-gentes. A entrevista de Aisha Diéne com a liderança quilombola da comunidade Manzo Ngunzo Kaiango, Makota Kidoialê, nos leva a refletir sobre a experiência da Covid-19 nos terreiros de candomblé. O convívio coletivo e a construção energética da reli-gião do candomblé efetivada a partir do corpo presente sofreram com as restrições sanitárias impostas pela Covid-19. A pandemia rompeu com o elemento principal que propulsiona o conhecimen-to e a prática da oralidade a partir da vivência, fazendo com que os terreiros tivessem que se reinventar nesse processo, como nos fala Makota. Por último, a entrevista de Sílvia Guimarães com o professor Carlos Rodrigues Brandão segue o fio da participação do professor em movimentos sociais na década de 1960/1970 que fo-ram precursores fundamentais da consolidação do SUS até o atual momento pandêmico. O professor apresenta uma reflexão sobre as ações do fazer antropológico em movimentos sociais e na pro-dução de conhecimento antropológico, trazendo a potencialidade do conceito de “pesquisa participante”, pensada por ele a partir de uma tradição latino-americana e que tem como princípio o fato de que a ciência nunca é neutra, menos ainda objetiva. Assim, a con-8PÓS, vol. 16, nº 2, 2021tribuição de uma ciência está na busca coletiva de conhecimento que torne a pessoa mais instruída e sábia, tanto quanto justa, livre, crítica, criativa, participativa, co-responsável e solidária.As peças aqui reunidas refletem o radicalmente comuni-tário, principal barreira para a política de morte que nos absorve neste momento, e nos apresentam outros caminhos. Também, de-monstram como re-existir neste contexto político que suprime a vida, o tempo, o espaço está em nos inserir no tempo largo das ancestralidades indígenas e do povo negro que conformam a Amé-rica Latina: tempo da confluência, do encontro e da escolha cole-tiva.Notas:1. Também denominada de atenção primária, trata-se do primeiro atendimento dos serviços públicos de Saúde para a população no Brasil, que implica em uma primeira análise do caso e do direcionamento aos serviços apropriados. Ele tem uma função preventiva uma vez que difunde informação e busca solucionar problemas de saúde antes de que se agravem. Casos mais graves são identificados e direcionados para os próximos níveis de atendimento. Dessa forma, a ABS organiza o fluxo de pessoas para os serviços nas redes brasileiras de saúde pública.Referências: DIAS, Bárbara N. & GUIMARÃES, Sílvia. Povos Indígenas no Brasil e a pandemia da covid-19. In: Aldira Guimarães Duarte; Carlos Dominguez Avila. (Org.). A Covid-19 no Brasil: ciência, inovação tecnológica e políticas públicas. 1ed. Curitiba: CRV, v. 1, 2020, p. 257-270.FRANTZ, Fanon. Condenados da Terra. RJ: Ed. Civilização Bra-sileira, 1968.9PÓS, vol. 16, nº 2, 2021                                                                       GUIMARÃES, Sílvia. O povo indígena Sanöma/Yanomami e a trilha de adoecimentos na pandemia da covid-19. Espaço Amerín-dio (UFRGS), v. 15, 2021, p. 16-37.GUIMARÃES, Sílvia. Sobre mães, bebês e as cerimônias funerá-rias Yanomami em meio a pandemia da covid. Boletim Extraor-dinário CAAF/Unifesp de enfrentamento da Covid-19 - Mortos e Mortes da Covid-19, v. 1, 2020, p. 8-15.KLEINMAN, Arthur; DAS, Veena; LOCK, Margaret. Social Suf-fering. Deadalus, vol. 125, n.1, 1996.VERON, Valdelice & GUIMARÃES, Sílvia. Sobre Máscaras, Fu-maça e Fogo Doméstico: Experiências das Mulheres Kaiowá na Pandemia da Covid-19. Vukápanavo: Revista Terena, v. 3, 2020, p. 115-127.

Fazer antropologia em tempos pandêmicos: narrativas de povos e comunidades tradicionais e de periferias urbanas sobre a pandemia Covid-19

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