Suzart, Elizabete Costa

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 Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras | 231 DICIONÁRIO CULTURAL PARA UMA PRÁTICA ESCRITA KARIRI-XOCÓ Elizabete Costa Suzart1 Resumo: Trata-se de um trabalho de pesquisa etnolinguística, dando continuidade ao estudo iniciado em 2018, mestrado em Crítica Cultural, com foco no arquivo da língua nativa, bem como todo o material utilizado para as aulas híbridas em sala de aula física e remota, ministradas na aldeia, sob instruções do coordenador do projeto de revitalização da língua falada pelos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio-AL, Nhenety KX. Buscar-se-á fazer o inventário dessa língua e a descrição do acervo vocabular, registrando a sua transcrição fonético-fonológica, segundo as normas do IPA (Alfabeto Fonético Internacional) e participação dos falantes da língua. Para tanto, será feito uma preparação teórica e técnica de laboratório em Linguística (2022.1), a fim de capacitar pesquisador e, este, posteriormente, os monitores indígenas para a execução na articulação do som das palavras da língua nativa e o exercício de práticas com grupo de professores da escola da aldeia. Pretende-se com esta ação coletiva a afirmação do bilinguismo na aldeia e a construção de um dicionário cultural. Serão utilizados, além das práticas orais e as narrativas de Nhenety KX, teóricos como, Altman (2021), Burquest (2006), Dinah Callou; Yonne Leite (2018), Everett (2019), Fiorin, Flores e Barbisan (2013), Queiroz (2008, 2012), Picanço (2012a, 2012b), Saussure (2006), dentre outros. Palavras-Chave: Kariri-Xocó. Língua nativa. Bilinguismo. Dicionário cultural.                                                              1  Doutoranda, aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (PÓS-CRÍTICA/UNEB), Linha de Pesquisa 1: Literatura, produção cultural e modos de vida. Orientador: Prof. Dr. Osmar Moreira dos Santos. Endereço eletrônico: bsuzart17@gmail.com.  232 | Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras INTRODUÇÃO Eles acreditam que o único tipo de linguagem que pode, na verdade, ser estudado é a chamada “língua I” ou língua interna. Uma língua-I é apenas o que o falante sabe a fim de produzir sua língua-E, que é falada externamente. O francês, o inglês, o português e o espanhol são língua-E, mas o conhecimento subjacente de seus falantes são suas línguas-I.  A partir de experiências e experimentações vivenciadas com o universo linguístico e cultural que permeia a vida dos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio-AL — o qual mantém ao longo de séculos sua etnicidade sob o segredo, no santuário da mata, o Ouricuri —, pude perceber que historicamente, esse povo não apenas foi destituído de seu território como também despejado de sua prática cultural, incluindo o silenciamento da língua, provocando uma acentuada modificação nos modos de vida autóctone; sendo submetidos ao etnocídio praticado através da força hegemônica dominante, pela Igreja e pelo Estado, manifesta o seu caráter insurgente de protesto a todas as formas de romper com as tradições e saberes ancestrais. A colonização corroborou para o extermínio de muitas nações nativas, fundamentada em um projeto de valorização e fixação de uma única língua e cultura europeias, onde não cabiam outros deuses e tampouco espaço para o bilinguismo. Assim, ao longo do tempo, o português foi imposto como língua oficial (séc. XVII) — e até a atualidade muitos povos são seus usuários — nas centenas de povos que tiveram suas línguas nativas silenciadas. O português sendo mantido como língua oficial do Brasil, suplantou as centenas de línguas, negligenciando a diversidade cultural do país e sua característica peculiar plurilinguística que contesta veemente ao monolinguismo, praticado pela política do Estado. Frente ao cenário de glotocídio praticado no passado e triste destino que se observa nos relatos de pesquisadores e linguistas — os quais afirmam que essas línguas tendem a  Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras | 233 desaparecer em algumas décadas — , se faz emergente o apoio na reparação para a retomada da tão sonhada língua nativa como uma identidade étno-discursiva2 que neste projeto coloca em foco a língua do Povo Kariri-Xocó. A língua do Povo Kariri-Xocó carrega na sua constituição os vocábulos de um acervo pertinente ao uso de costumes nos ritos, cantos de Toré e tradições culturais, cujo tempo e processo de colonização linguística não conseguiram apagá-los da sua memória coletiva e da prática oral. Como nos afirma Everett (2019, p. 90): “Cultura acarreta raciocínio simbólico e projeção de significado sobre o mundo, o que significa que ela não diz respeito às coisas como são, mas como são interpretadas, usadas pelos membros da comunidade que as utilizam”.  Como aporte teórico e promessa de grande esperança de êxito na reconstituição de uma língua nativa, Queiroz (2008) apresenta em sua dissertação os “Aspectos da Fonologia Dzubukuá” e em sua tese de doutorado, Queiroz (2012) “Um Estudo Gramatical da Língua Dzubukuá, Família Kariri”. Observa a relevância deste trabalho evidenciado pelo autor que até a atualidade o que se tem pesquisado possui um caráter limitado e um tanto superficial em caráter de pesquisa científica. Por ser um trabalho pioneiro, de pesquisa no tronco linguístico Macro-Jê, da família Kariri, estas fontes trazem uma enorme contribuição para a Linguística e, principalmente, para as futuras pesquisas na língua Kariri de origem.  Outra fonte de trabalho de pesquisa relevante pode ser percebida em Picanço (2012a), com tese de doutorado em                                                              2  Expressão usada pela Dra. Tânia Clemente de Souza e explicada na live de lançamento do dossiê: “O Levante Linguístico Indígena no NE, MG, ES: aspectos teóricos, políticos e etnográficos”, realizado em 16 de novembro do presente ano.  234 | Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras Linguística, defendida em 2005, com o tema: “Introdução ao Mundurukú: fonética, fonologia e ortografia”; um trabalho também inspirador e de caráter etnolinguístico, envolvendo uma atuação para uma aprendizagem participativa, dentro de uma visão de coletivismo que envolve os próprios indígenas no ensino/aprendizagem da língua, levantando um lema bastante atual de que “ninguém solta a mão de ninguém”, em busca do resgate de mais uma língua indígena, outrora silenciada. O rigor técnico e fundamentação teórica pautados na ciência Linguística, vem a ser uma potente arma para se estabelecer a reativação de línguas indígenas, bem como o reestabelecimento deste potencial instrumento que viabilizará a prática do bilinguismo de maneira escancarada ao mundo, dentro e fora da aldeia. As dicotomias sincronia/diacronia e língua/fala são de fundamental importância nesta pesquisa, levando em conta a posição que Saussure (2006) ocupa em não excluir em seus estudos, registrados no CLG, “nem a história, nem o sentido e nem o sujeito” (CRUZ apud FIORIN; FLORES, BARBISAN, 2013, p. 36). Além da inclusão digital e tecnológica, os indígenas contemporâneos já perceberam que o mundo inteiro escreve e que para estarem inseridos no diálogo intercultural é exigido uma postura de protagonismo e de intersubjetividade. Mediante esta consciência, percebe-se cada vez mais a voz ativa e tenacidade no apelo para reavivar, reativar e retomar os sinais vitalícios da língua nativa. Afirmação que se pode ouvir em qualquer diálogo na aldeia e proferida pelo principal estudioso, dentre os falantes da língua, Nhenety KX, que vê o resgate da língua como única saída para a transculturalidade no mundo globalizado.  Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras | 235 METODOLOGIA A pesquisa segue um percurso metodológico de caráter qualitativo, a ser realizada in loco na Aldeia Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio-AL, local onde os participantes da pesquisa se encontram e professores/instrutores atuam no ensino, todavia, informal da língua. Pretendemos desenvolver atividades colaborativas no ambiente escolar e fora deste, envolvendo todos os interessados, a fim de que os alunos se sintam mais seguros e acolhidos no aprendizado da língua nativa. O conteúdo a ser explorado e estudado será planejado e desenvolvido com os instrutores envolvidos no projeto e um grupo de apoio a ser formado com indígenas para dar suporte nas necessidades apontadas ou que irão, provavelmente, surgir no decorrer da pesquisa. Para a coleta de dados utilizaremos alguns procedimentos, os quais estarão sujeitos a ajustes: 1) Análise do acervo de palavras, bem como das atividades desenvolvidas no estudo híbrido da língua; 2) Relatórios periódicos com decisões feitas pelo grupo; 3) Entrevistas narrativas para sondagem de necessidades e criação ou agregação de novos vocábulos; 4) Avaliação das sequências didáticas construídas pelo grupo de apoio pedagógico 5) Observação e análise de aulas e acompanhamento na execução e correção de exercícios estruturais. Além disso, serão ministradas como tarefas complementares atividades extraclasse, buscando a ajuda mútua entre os aprendizes da língua — os mesmos tirarão dúvidas ou corrigirão questões no auxílio um do outro, acompanhado pelos monitores. Acredita-se que esta ação encorajará e também provocará a autoconfiança do grupo para falar e escrever na língua.  236 | Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras A formação de um grupo dedicado ao ensino/aprendizagem da língua permitirá o apoio coletivo ao longo da pesquisa, visando atingir os objetivos de maneira consistente, eficaz e, ao mesmo tempo, prazerosa e adaptada à realidade cultural; assim, será construído e firmado um intercâmbio através do qual as relações intersubjetivas sejam mantidas entre a representatividade acadêmica e os parceiros indígenas, envolvidos na pesquisa. Acredita-se que esta dinâmica proporcionará um vínculo mais sólido entre o conhecimento científico e o conhecimento empírico dos participantes na pesquisa, possibilitando a valorização da cultura e dos saberes indígenas. A análise das aulas, observação e controle nas atividades contará com o aporte teórico previamente adquirido e sob domínio da pesquisadora. Nesta etapa será feito o acompanhamento com embasamento científico da Linguística e suas ferramentas, fonética e fonologia para uma avaliação coletiva das sequências didáticas. RESULTADO E CONTRIBUIÇÃO ESPERADOS A realização deste trabalho converge na concretização do desejo do povo Kariri-Xocó em experimentar, se reapropriar e difundir o conhecimento nativo, também através da língua; aplicar os saberes epistêmicos nativos, significa romper as diversas formas de silenciamento estabelecido pelo colonialismo ao longo de séculos. Portanto, será explorado ao máximo todo potencial provindo da tradição e do modo de vida indígenas (costumes, valores e universo linguístico praticados na oralidade, presentes nos cantos de Toré, histórias, mitos, contos indígenas, jogos coletivos, brincadeiras, etc.). Procuraremos trabalhar os textos escritos por indígenas da comunidade, livros editados com autoria indígena, composições  Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras | 237 feitas pelos cantores de Toré e Rojão, dentre outras atividades tradicionais.  Espera-se ao final desta pesquisa contribuir para a construção de um dicionário cultural para uso e auxílio do ensino-aprendizagem da língua Kariri-Xocó, fazendo uso das noções de transcrição fonética, baseadas nas normas do Alfabeto Fonético Internacional (IPA). REFERÊNCIAS ALTMAN, Cristina. A guerra fria estruturalista: estudos em historiografia linguística brasileira/Cristina Altman. São Paulo: Parábola Editora, 2021. ANCHIETA, José de. Arte de Gramática da Língoa mais usada na Costa do Brasil (1595). São Paulo: Edições Loyola, 1990. CALVET, Louis-Jean. Tradição oral e tradição escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. CALLOU, Dinah; LEITE, Yonne. Introdução à Fonética e à Fonologia. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar. 2018. 132p. EVERETT, Daniel L. Linguagem: a história da maior invenção da humanidade. Trad. Maurício Resende. — São Paulo: Contexto, 2019. 400p.  FERREIRA NETTO, Waldemar. Introdução à fonologia da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Paulistana, 2011. FONTE Sil Doulos IPA93. Disponível em: https://www.sofontes.com.br/SILDoulos-IPA93/download/22947. Acesso em 18 jan. 2020. MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v 1/ Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes (Org.) — São Paulo: Cortez. 2001. 179p. MAMIANI, Pe. L.V. [1699] 1942. Arte de Grammatica da Língua Brasílica da Naçam Kiriri. 1st ed. Lisboa 1699; 2. ed. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1877. PICANÇO, Gessiane. Introdução ao Mundurukú: fonética, fonologia e ortografia (2005). Cadernos de Etnolinguística (Série Monografia, 3) ISSN (1946 7095). Universidade Federal do Pará, 2012a.  238 | Anais Seminário Interlinhas 2021 — Fábrica de Letras PICANÇO, Gessiane. Language Planning for Mundurukú do Amazonas. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.12 n.2, p. 405-423. 2012b.  QUEIROZ, José Márcio de. Aspectos da Fonologia Dzubukuá. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). CAC. Linguística, 2008. 122p.  QUEIROZ, José Márcio de. Um Estudo Gramatical da Língua Dzubukuá, Família Kariri. Doutorado em Linguística — Universidade Federal da Paraíba (UFPB/PROLING). Letras CCHLA 2012. 427p.  RODRIGUES, Aryon D. Línguas Brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. 4. ed. Edições Loyola, 2002. SIL NON-ROMAN SCRIPT INITIATIVE — “MSKLC Layout de Teclado para “IPA Unicode 6.2 (ver. 1.3 BR)”. Versão original: Lorna Evans. SIL Non-Roman Script Iniciative NRSI. Versão traduzido em português por William R. Penning, SIL Brasil. 2013. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27. ed. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006. 

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