Garcia Martins, Francielle

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Revistas da Faculdade de Ciências e Tecnologia UNESP (Universidade Estadual Paulista São Paulo)

  Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 44, v. 3, p. 6-9, set/2022, Dossiê Temático “Geografia, Ensino e Pesquisa no transcurso da pandemia da Covid-19”. ISSN: 2176-5774  6  REFLEXÕES DE UMA PESQUISADORA LATINA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19  Francielle Garcia Martins Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, SP E-mail: francielegm@gmail.com   Mais uma semana se inicia e, em um piscar de olhos, já terá findado. Os últimos dois anos foram avassaladores, uma enxurrada de acontecimentos se sucederam tornando o tempo, em sua velocidade infinita, mais atroz. Me pego com esses pensamentos em mais uma tarde chuvosa típica do verão do Oeste Paulista. Esse clima, já propício para ficar em casa, se tornou ainda mais representativo durante o isolamento social, forçado pela pandemia de Covid-19. Tal isolamento já não é mais necessário, a essa altura parte significativa da população já está imunizada, graças à ciência e ao sistema público de saúde, e autoridades governamentais já discutem a não obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes abertos e fechados, ação essa que provoca uma série de críticas de cientistas. Já é o momento? Os gráficos sobre a evolução de casos e mortes de Covid-19 apresentados, em um sobe e desce infinito, acaba demonstrando as incertezas sobre o futuro da pandemia. Nesses gráficos encontro de certa forma também minhas emoções e a capacidade de pensar o meu próprio futuro. Ambos estão constantemente em mudança, como em uma montanha russa. Em pouco mais de dois anos ter que lidar com negacionistas dentro da própria família, questionamentos infundados sobre vacinas, a veracidade de fatos relacionados ao vírus e um (des)governo movido pelo ódio, descaso, despreparo que ceifou a vida de milhares de brasileiros, foram um desafio à manutenção da saúde mental.  Tais acontecimentos impactaram de forma significativa os atos de pensar, ler, escrever, observar e produzir ciência. O tempo e a realidade passaram como um rolo compressor em meus pensamentos. Momentos de medo, alternados com esperança foram se sucedendo e o primeiro persistindo em relação ao segundo. Tive o diagnóstico de Covid-19 confirmado no início desse ano. A princípio um certo pânico predominou, mas já com as três doses das vacinas, o sentimento logo foi passando. Foram cinco dias de sintomas considerados leves, mas diferentes de qualquer coisa que já tenha sentido. Gripezinha? Longe disso. Um cansaço que nunca havia sentido.  Crônica Reflexões de uma pesquisadora latina durante a pandemia de Covid-19. Francielle Garcia Martins.  Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 44, v. 3, p. 6-9, set/2022, Dossiê Temático “Geografia, Ensino e Pesquisa no transcurso da pandemia da Covid-19”. ISSN: 2176-5774  7 Os dias de isolamento passaram e tudo voltou ao normal. Considerava me sentir bem. Porém, ledo engano. A Covid-19 é uma doença traiçoeira. De repente um sono profundo, cansaço, lapsos de memória e a descoberta que até mesmo em pacientes imunizados, que apresentaram casos leves, podem apresentar uma série de sequelas e necessitam de tratamento. Justo tais sintomasocorreram comigo, que preciso ao máximo de disposição e concentração. Mais uma descida na montanha russa de emoções.  Nesses anos a produção acadêmica se tornou ainda mais solitária. Aulas por plataformas digitais, eventos no mesmo formato. Como alguém introspectivo, ter que lidar com a câmera do computador e pessoas observando minha imagem não foi fácil. Já calada em ambientes coletivos físicos, nos virtuais então foram de silêncio. Conhecer e dialogar com colegas se tornou mais um desafio. Agora, com a volta de atividades presenciais no campus, um frio na barriga se faz presente, sensação semelhante ao primeiro dia de ida para a escola. Dois anos lidando com um grupo mínimo de pessoas e, de repente, voltaremos à “normalidade”. Não sei como está minha capacidade de socialização.  Entre todas essas lembranças, reflexões e receios, tenho a sorte de estar em frente a uma grande janela. Olho para rua e a chuva cai em sinfonia. Fecho os olhos e escuto com calma aquele som e sinto o cheiro característico de chuva. Para mim a chuva ainda é sinônimo de paz.  Seria um cenário perfeito, mas não. Assim que me volto à realidade, me deparo com a quantidade de lixo que desce carregada com a enxurrada que se forma. Os que mais se destacam entre eles são pedaços enormes de isopor. Isopor inclusive, que foi deixado por vizinhos que se mudaram para sua nova casa. Casa nova! Tudo novo! Porém, hábitos ainda antigos. Todos os móveis e eletrodomésticos envoltos com muito plástico, papelão e isopor, que não servem para nada e certamente estorvam e atrapalham a nova casa. E assim, como num passe de mágica, basta colocar todo esse lixo do outro lado da calçada e ele sumirá. Sumiu! Foi carregado pelas águas da chuva e certamente chegando logo aos rios e seguindo seu caminho rumo aos oceanos, deixando um rastro de poluição e destruição.  Penso em todo o caminho que tais resíduos poderão percorrer e quando volto meu olhar novamente para a rua, vem subindo afobada, tentando fugir logo da chuva, uma mulher negra, idosa, por volta de 60 anos, semblante cansado, com seu carrinho cheio de resíduos recicláveis coletados para venda e, provavelmente importante fonte de sustento a família. Será que a chuva traz a ela o tal sentimento de paz? Bom que já está próxima a sua casa. Uma construção simples, de madeira, na beira da linha férrea, com seu quintal de terra batida, o Crônica Reflexões de uma pesquisadora latina durante a pandemia de Covid-19. Francielle Garcia Martins.  Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 44, v. 3, p. 6-9, set/2022, Dossiê Temático “Geografia, Ensino e Pesquisa no transcurso da pandemia da Covid-19”. ISSN: 2176-5774  8 local em que armazena os resíduos para a venda e que realiza parte do seu trabalho, contribuindo de forma essencial para a destinação correta de tais resíduos, mas ao mesmo tempo denunciando a perversa desigualdade social estrutural que marca o Brasil. As crianças, de todas as idades, a ajudam na separação dos materiais e ao mesmo tempo fazem daqueles resíduos brinquedos. Crianças estas que estiveram fora da escola por mais de um ano, devido a pandemia. Terão elas a oportunidade de usufruir de um futuro diferente da catadora de materiais recicláveis? Será dada a oportunidade para que elas diminuam as defasagens de aprendizagem causadas pelo longo período longe da sala de aula? Essas são ainda perguntas sem respostas, infelizmente pela ausência de políticas públicas adequadas para minimizar tais impactos no futuro de tantas crianças.  Observando à distância e, consequentemente superficialmente, a realidade de tal mulher, é inevitável me lembrar que aproximadamente 70% dos catadores de materiais recicláveis é constituído por mulheres. Elas estão em todos os lugares: nas cooperativas, nas ruas, nos lixões. Cada qual com seus desafios a serem enfrentados, em níveis diferentes.  As que estão organizadas em cooperativas, a partir de um longo processo de luta e resistência, tem acesso a redes de solidariedade em que juntas se fortalecem, surgindo como novas sujeitas, exigindo maior participação, poder e vocalizando suas demandas, a fim de melhorarem suas condições de trabalho e renda, lutando por direitos, se organizando para que aquilo que consideram essencial, aconteça. Inclusive lutam constantemente para que tenham visibilidade e importância reconhecidas pela sociedade, sendo que parte desta sociedade, a mesma que descarta seu lixo e acredita que ele sumirá como num passe de mágica, invisibiliza o trabalho fundamental dessa classe, não deixando de citar a inércia de políticas públicas que contribuem para tal cenário.  No ano de 2019, anterior à pandemia de Covid-19 e com ânimos a todo vapor, tive a oportunidade valiosa de estar próxima e ouvir mulheres que se organizam em um movimento de catadoras, que lutam para fortalecer e dar protagonismo às mulheres catadoras. O discurso delas era potente. Fiquei completamente admirada e privilegiada por ter a oportunidade de estar e ouvir aquelas mulheres. A força e esperança delas foi contagiante, profunda. Elas eram as que um dia estiveram nos lixões, nas ruas como a senhora que descrevi, as que sofreram e ainda sofrem diversos tipos de violência escancarada e velada, que não tiveram oportunidades durante suas vidas, que não tiveram muitas opções de escolha. E se a todas mulheres catadoras fosse dada a oportunidade de trocas de Crônica Reflexões de uma pesquisadora latina durante a pandemia de Covid-19. Francielle Garcia Martins.  Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 44, v. 3, p. 6-9, set/2022, Dossiê Temático “Geografia, Ensino e Pesquisa no transcurso da pandemia da Covid-19”. ISSN: 2176-5774  9 experiências, de formação de uma rede de fortalecimento da classe? Já imagino toda a cadeia de benefícios sociais, políticos e ambientais que tal movimento atingiria.  Me deparo então com a minha atual situação de montanha russa de emoções, em que medos, incertezas, desânimo estão conquistando território vasto e, num sopro de ânimo e coragem, me vem a responsabilidade enquanto pesquisadora latino-americana em tentar retratar a realidade de mulheres catadoras de materiais recicláveis e tudo que a elas está relacionado, na tentativa de aprendizado e contribuição. Fecho os olhos novamente, respiro profundamente e me lembro da esperança, mas ela em modo de verbo, ativo, ESPERANÇAR, agir e não esperar. Volto ao trabalho, atenta para que não sucumba de vez ao tempo atroz. ESPERANÇAR.  

[CRÔNICA] REFLEXÕES DE UMA PESQUISADORA LATINA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

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