Palavras proferidas pelo Professor Kabengele Munanga na cerminonia de concessão ao título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 2021

Munanga, Kabengele

Portuguese

Cadernos Espinosanos (E-Journal)

África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 42, p. 8-15, 2021http://dx.doi.org/8Palavras de agradecimentos à concessão do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 2021Kabengele MunangaMinhas primeiras palavras são de muitos e sinceros agradecimentos, a começar pela Magnífica Reitora, Professora Doutora Denise Pires de Car-valho. Através dela, gostaria de saudar o Magnífico Vice-Reitor, Prof. Dr. Carlos Frederico Leão Rocha e os membros do Colendo Conselho Univer-sitário que, por um voto unânime, decidiram me conceder o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das melhores e maiores Universidades Públicas, não somente do Brasil, mas também dos países da América do Sul.  Me sinto muito feliz em receber este título, mas a expressão desta fe-licidade fica sufocada pela tristeza coletiva devida às perdas de milhares de vidas humanas pela Covid-19. É paradoxal conciliar a alegria individual com a tristeza coletiva, mas como devemos continuar a lutar para sobreviver, não devemos abrir mãos dos sentimentos de dor coletiva e de solidariedade que gostaria nesta cerimônia, de transmitir para as pessoas que direta ou indire-tamente foram castigadas por esta hecatombe, mesmo consciente de que faço parte do comum dos mortais e sem força política necessária para interferir no processo.Lembrar-se-ia que em 25 de maio de 2020, o cidadão negro ame-ricano, George Flody, foi morto por estrangulamento pelo policial Derek Chauvin na cidade de Minneapolis, Estados de Minnesota, USA. Pela pri-África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 42, p. 8-15, 202198meira vez as manifestações de protestos contra a violência policial antinegros contaram com a participação massiva dos cidadãos americanos brancos em cerca de 300 cidades. Essas manifestações se alastraram em algumas capitais europeias (Londres, Paris, Amsterdam, Berlim) e em alguns países asiáticos como Japão e Correia do Sul e chegaram também no Brasil em 31 de maio de 2020. O slogan era “Não a violência policial antinegro, não ao racismo e ao fascismo”. As historinhas de balas perdidas que matam pessoas negras e po-bres, entre elas as crianças nas comunidades populares do Rio de Janeiro são corriqueiras e conhecidas. Sempre me pergunto como uma bala que mata uma pessoa pode ser considerada como perdida se ela foi fabricada para matar. O episódio de 80 tiros disparados pelo Exército que matou o músico Evaldo Rosa, em 07 de abril de 2019 já foi esquecido. Os casos de João Pedro e Guilherme que fizeram parte dos protestos de 31 de maio em algumas cidades brasileiras poderão também daqui a pouco serem esquecidos. O assassinato da vereadora Marielle Franco não foi esclarecido até hoje. Como se não bastasse, veio a chacina de 28 pessoas em 06 de maio na Comunidade de Jacarezinho em plena pandemia para piorar as dores dos que morrem todos os dias da Covid-19. Escutamos a respeito muitos discur-sos bem articulados que agradam algumas inteligências e consciências, mas as propostas de mudanças radicais que passariam pela reforma profunda do sistema nacional de segurança pública e da polícia, não se discute. Enquanto continuam a apurar e a discursar, negros e pobres continuam a morrer da violência letal policial. Até quando?Soube que a decisão para a concessão deste título foi tomada na gestão do Magnífico Reitor Professor Dr. Roberto Leher e da Magnífica Vice-Rei-tora Denise Nascimento. A ele e a ela, que deram a ponta pé da partida, gostaria também de lhes dizer meu muito obrigado. Antes da decisão do Con-selho Universitário, alguns órgãos da UFRJ e intelectuais que neles atuam foram os primeiros a idealizar e a formular a proposta que originou este título. Seus respectivos conselhos e seus membros foram os primeiros a tomar a ge-nerosa decisão que legitimou este momento que hora estamos ritualizando. Quero citar aqui o Conselho do Centro de Filosofia e Ciências Hu-manas (CFCH) e seu Decano, Prof. Dr. Marcelo Macedo Corrêa e Cas-tro; o Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) e sua Digníssima Diretora, Profa. Dra. Maria Celeste Simões Marques e seu KABENGELE MUNANGA Palavras de agradecimentos à concessão do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 202110Digníssimo Vice-Diretor, Prof. Dr. Vantuil Pereira, e através deles e delas estender minha saudação às conselheiras e aos conselheiros, que depositaram positivamente seu voto sem o qual este momento não teria existido. Quero saudar a Profa. Joana Varga, Coordenadora do Programa de Políticas Pú-blicas em Direitos Humanos e o Professor Sergio Batista, da Faculdade da Educação. Não posso deixar de mencionar a atuação da Câmara de Política Racial, da Comissão de Heteroidentificação das ações afirmativas, do Grupo Pró-Institucionalização NEABI, de Coletivos Negros Estudantis e do Cole-tivo de Docentes Negras e Negros da UFRJ. Sem a presença de estudantes, talvez a universidade como instituição não tivesse a razão de existir. Este mundo de estudantes que considero como a clientela mais nobre da universidade, começou a receber a partir do ano de 2000 mais ou menos, uma nova clientela que desde a sua fundação era quase invisível ou sub-representada demograficamente. Essa nova clientela é com-posta de estudantes negros e negras, isto é, pretos e pardos, e de estudantes indígenas. Acompanhamos os debates apaixonados e maniqueístas do Bem e do Mal que dividiram as opiniões públicas em geral e em especial pesquisado-res e estudiosos que intelectualmente dedicaram anos de suas vidas estudando as questões da população negra no país, não apenas nesta universidade, mas em todas as universidades públicas do país. Não é disso que se trata neste momento de agradecimento, mas é apenas um parêntese, pois tem a ver com meu percurso intelectual.Recebi a informação sobre este título com muita surpresa e alegria. Com surpresa porque nunca sonhei com ele. Com alegria porque é sentimen-talmente confortável descobrir que aquilo que estava defendendo num contex-to de solidariedade para construir uma sociedade em que os direitos humanos não sofram restrições por causa das diferenças somáticas foi percebido e con-siderado por outras pessoas como uma contribuição para a transformação da sociedade. Não sou o primeiro nesta luta, pois há muitos nomes de grandes intelectuais brancos e negros, homens e mulheres, de grandes militantes ne-gras e negros que me antecederam e com quem muito aprendi. Mas o que eu teria feito de especial para merecer este título? É uma pergunta que algumas pessoas, com toda a razão poderiam fazer. Creio que não teria sentido contar o que eu fiz, pois as pessoas que decidiram me conce-der este título sabem melhor que eu por que tomaram essa sábia decisão. No África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 42, p. 8-15, 202110 11entanto, algumas palavras são necessárias em respeito com algumas pessoas que nos acompanham nesta cerimônia.  Acredito que não teria sentido fazer ciência sem consciência dos problemas da sociedade em que estamos inseri-dos. E a verdadeira consciência não aceita o silêncio e a indiferença diante de qualquer forma de injustiça que anula os direitos humanos fundamentais de uma cidadã ou de um cidadão pouco importa a cor de sua pele, seu sexo, classe social e religião, entre outras diferenças.Que força teria eu apesar da consciência da importância para erradicar o racismo sui generis brasileiro, pouco confessado e assumido? Talvez nenhu-ma, mas pude pelo menos somar minha voz às vozes de outras pessoas que já estavam nessa luta dezenas de anos antes de mim, num gesto de solidariedade humana. Mesmo sabendo que essa solidariedade sozinha não resolveria um grave problema da sociedade que exige a vontade política dessa mesma socie-dade através de seus dirigentes e responsáveis políticos.Como nasceu essa consciência de um jovem que fugiu da ditadura mili-tar do seu país de origem, atual República Democrática do Congo, para con-cluir seu doutorado na universidade de São Paulo em pleno regime militar?Com efeito, cheguei na Universidade de São Paulo em julho de 1975, isto é, 45 anos atrás, com uma bolsa de dois anos para fazer meu doutorado iniciado na Universidade Católica de Louvain na Bélgica, já que as condições políticas do meu país de origem não me deixaram concluir. Defendida a tese dois anos depois, saí correndo de volta, porque tinha enormes responsabilida-des num país que tinha apenas 15 anos de independência e grande carência de quadros de cientistas e intelectuais. Infelizmente, a ditadura militar instala-da depois da independência afastou alguns desses quadros que começaram a fugir em busca de sobrevivência nas antigas metrópoles ex-colonizadoras, nos Estados Unidos e no Canadá. Eu voltei de novo para o Brasil, onde reiniciei minha carreira acadê-mica na USP depois de transitar por dois anos como Professor visitante na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. Entrei na USP como Professor Doutor em 1980 e fui aposentado em 2012, por idade, já como Professor Titular. Como estudioso e pesquisador, escolhi me engajar na área das relações raciais no Brasil e por isso me envolvi científica e ideologicamente com as questões que dizem respeito à inclusão da população negra, grande vítima KABENGELE MUNANGA Palavras de agradecimentos à concessão do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 202112do racismo à brasileira, ao reconhecimento de sua identidade coletiva, de sua participação e contribuição na formação da cultura e do povo brasileiro. Neste sentido, estive presente no debate nacional sobre cotas e políticas afirmativas que se iniciou intensivamente em 2002, depois da III Conferência Mundial da ONU em Durban, África do Sul em agosto/setembro de 2001, contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e intolerância correlata. Estive presente na Audiência Pública de março de 2009, convocada pelo STF para discutir a constitucionalidade das cotas. Todo esse processo do meu envolvimento com as questões sociais e especificamente com as questões que dizem respeito à inclusão da população negra na sociedade nasceu aqui na universidade brasileira através das disciplinas que frequentei nos cursos de Pós-Graduação.Outro aspecto instigante desse processo vem da consciência de que fui o primeiro negro a ingressar na carreira docente na maior Faculdade da USP, a FFLCH. O fato de ser o primeiro negro a ingressar nessa Faculdade foi para mim um motivo de constante questionamento sobre minha posição num lugar onde o primeiro negro a ingressar fui eu, um jovem que fugiu do seu país de origem para sobreviver, em vez de ser um negro da terra, um negro brasileiro. Quero dizer que a oportunidade que me foi oferecida num gesto de solida-riedade humana não foi dada para ele. Isto se chama paradoxo! O que teria sido minha atitude? Orgulhar-me por ser uma pessoa de sorte que se integrou na universidade de brancos ou me solidarizar com ele, o negro da terra? Essa consciência foi um peso muito grande para mim, embora consciente da origem dessa chocante exclusão: o racismo à brasileira. Um dia um de meus profes-sores, que foi meu grande mestre, me disse que não compreendia por que eu falava da situação do negro no Brasil com tanta carga emocional, uma vez que não nasci negro brasileiro. Não tinha resposta para lhe dar imediatamente, mas silenciosamente cheguei a imaginar que ele estava me desqualificando, pois, sem generalização, algumas pessoas costumam dizer até em nossas aca-demias que negros não têm capacidade de análise sobre sua própria situação enquanto vítimas do racismo por causa de sua exagerada carga emocional e afetiva. Em outros termos, é preciso ser branco para estudar negros. Mas, como eu podia falar do negro somente do ponto de vista da aca-demia sem me aproximar dele para saber o que pensava enquanto vítima da discriminação racial? Essa preocupação me obrigou a aprender a dançar a África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 42, p. 8-15, 202112 13valsa, isto é, a alternar meus passos à frente e atrás, entre a academia e a mi-litância intelectual negra. Nessa valsa, na academia me ensinaram as teorias e os conceitos, me ensinaram as posturas metodológicas e epistemológicas que nem sempre traduzem as realidades negras em sua autenticidade. No movimento negro, me ensinaram outras linguagens, expressões e conceitos, me ensinaram a linguagem da dor da vítima e dos problemas do seu cotidia-no que meus filhos viviam nas ruas em contatos com os policiais como todos os jovens negros e negras desta sociedade. Ensinaram-me a descobrir o que não teria aprendido se tivesse ficado preso entre as paredes da academia; ensinaram-me a não ficar distante frio e indiferente para bancar a chamada objetividade científica, mas também a falar a linguagem da dor e do coração sem deixar de pensar e de analisar objetivamente as propostas de transforma-ção da sociedade em termos de direitos humanos; ensinaram-me a produzir outras narrativas, com base no que a escritora Conceição Evaristo chama com propriedade de escrevivência.  A emoção e a razão se transformaram dentro de mim em irmãs gêmeas que me condicionam humanamente para ser o que sou em minhas relações humanas e ambições intelectuais. Em outros termos, me tornei um intérprete do pensamento dos negros já que eles não estavam sendo representados nesse lugar do poder simbólico do pensamento e de nomeação dos outros, onde eu fui aceito não porque era mais inteligente, mas por sorte da vida. Costumo dizer que se tivesse nascido no Brasil como cidadão negro, talvez não estivesse sentado neste lugar. Por um lado, tinha receio de ser considerado como um paternalista intrometido, pela minha origem estrangeira, mas, por outro lado, me sentia na obrigação moral de dizer o que eles me ensinaram, nesse universo acadê-mico, onde são pouco representados ou quase invisíveis. Escutei críticas do tipo “por que ele se intromete em nossas questões em vez de falar da sofrida África”, embora eu não tivesse deixado de falar dos problemas desse sofrido continente do qual sou originário.Ao convite de diversas universidades públicas estaduais e federais que conheciam meus pontos de vista participei de vários debates cujos resultados foram encorajadores, pois algumas adotaram o sistema de cotas com reserva de vagas para negros, indígenas e brancos oriundos da escola pública bem antes da Lei Federal 12.711 de 2012. Porque estou contando para vocês essas historinhas sobre minha parti-KABENGELE MUNANGA Palavras de agradecimentos à concessão do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 202114cipação que colegas que me acompanharam devem conhecer? Para dizer que este honroso título que a UFRJ está me concedendo carrega muitas mãos que não foram citadas nominalmente nesta fala, muitos anônimos, outros nem tanto e que, fundamentalmente, ainda temos muito a lutar pela igualdade de direitos e oportunidades. Considero este título como uma promoção à causa que defendo, que luto, melhor, que defendemos e lutamos. No ano passado, quando o mundo e o Brasil foram surpreendidos por essa hecatombe provocada pela Covid-19, a UFRJ completou um século de sua existência. As manifestações de celebração e rememoração do seu cente-nário estão ainda em execução apesar das frustrações causadas pela pande-mia. Hoje é dia da África em que se comemora o aniversário de 58 anos da criação da Organização da Unidade Africana, atual União Africana.  Que bela coincidência receber este honroso título nas datas tão significativas. Que sorte, entrar na relação de personagens que receberam o Doutor Honoris Cau-sa durante a história de cem anos desta grande Universidade. Em 2022, termina a vigência da obrigatoriedade das cotas ou políticas afirmativas nas universidades federais, a menos que tenhamos surpresas im-previstas antes desse prazo como está acontecendo na atual conjuntura política do país. Ou seja, por um lado as universidades não terão mais obrigação pela lei para colocar em funcionamento as políticas afirmativas, e por outro lado não poderão ser punidas se continuarem por decisões próprias, porque não haverá inconstitucionalidade, como foi decidido pelo voto unânime do Supre-mo Tribunal Federal em 2010. Creio que prevalecerá a responsabilidade e o papel da universidade na defesa dos direitos humanos e nas lutas contra to-das as formas de discriminação. Nosso papel como estudiosos, pesquisadores, cientistas e intelectuais não é somente de observar os fenômenos da sociedade, da natureza e outros, descrevê-los, analisá-los e explicá-los, produzir ciências e tecnologias e divulgá-las através de nossas publicações e ensinamentos, mas também de apontar alguns caminhos de mudanças e transformação quando interpelados pela sociedade. Podemos apontar caminhos certos ou errados, mas o pior seria ficar indiferentes ou em cima do muro, como se diz popular-mente.Finalizando, reitero meus sinceros e profundos agradecimentos à UFRJ, lembrando que a manutenção de direitos e avanços sociais depende de ações conjuntas e que o exercício da cidadania está em constante construção.África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 42, p. 8-15, 202114 15Às minhas amigas e meus amigos do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia e de outros Estados que consagraram seu precioso tempo nesta tarde para me abraçar e me prestigiar nesta cerimônia, para meus familiares repre-sentados por Irene Kabengele, minha companheira de 42 anos de vida, não encontro palavras mais fortes para expressar meus sentimentos, limitando-me a lhes dizer meu muito obrigado por estar ao meu lado para me apoiar a viver esse momento de grande emoção.

Palavras de agradecimentos à concessão do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 25 de maio de 2021

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