Ferreira, Cinara

Pivetta, Rejane

Portuguese

Archives of the Faculty of Veterinary Medicine UFRGS

ENTREVISTANÁDIA BATTELLA GOTLIBPor Rejane Pivetta e Cinara FerreiraNádia Battella Gotlib é livre-docente em Literatura Brasileira pela Universidadede São Paulo, onde atuou como professora de Literatura Portuguesa e LiteraturaBrasileira. Atualmente é professora colaboradora do Programa de Pós-Graduaçãoem Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP.Reconhecida como grande especialista sobre a obra de Clarice Lispector, Gotlibrealizou pesquisas em instituições brasileiras e estrangeiras, das quais resultaramimportantes textos para o conhecimento da autora, como Clarice - uma vida quese conta (1995) e Clarice: fotobiografia (2007).260Nesta entrevista, a pesquisadora apresenta a sua visão sobre a figura e a obra deClarice Lispector, fruto do intenso convívio com o universo da escritora e dareflexão sensível que faz sobre os meandros da escrita clariceana.Agradecemos a Nádia pela generosidade em repartir o seu conhecimento sobre aescritora brasileira, alargando para os leitores os horizontes da experimentaçãoliterária de Clarice Lispector e sua inesgotável “matéria viva” que pulsa.1. Pra começar, podes contar como foi o teu encontro com Clarice e o que fezcom que tu te tornasses uma pesquisadora da vida e da obra da autora?O meu encontro com Clarice Lispector, isto é, com a obra de Clarice Lispector,aconteceu na década de 1960, quando eu era estudante de Letras na Universidadede Brasília. Ganhei um livro de presente, Laços de família, que me foi oferecidopor um professor da Faculdade. Li esses contos e fiquei intrigada: não havia lidoaté então nada parecido. Havia ali algo que me escapava. Não conseguia ‘traduzir’em palavras o que efetivamente acontecia com certas personagens. A partir dessemomento, comecei a ler outros livros da autora. Paralelamente, terminei o cursode graduação e iniciei o curso de pós-graduação na Universidade de São Paulo.Defendi meu mestrado e doutorado em literatura portuguesa. E ali trabalhei comoprofessora de literatura portuguesa por quase 10 anos, até que decidi me transferirpara a disciplina de Literatura Brasileira e, a partir de 1982, ministrar cursos depós-graduação especificamente sobre Clarice Lispector. Na década seguinte, emdezembro de 1993, defendi minha livre-docência na USP com pesquisa sobreClarice LIspector, parcialmente publicada com o título de Clarice, uma vida quese conta em 1995. E em 2008 publiquei meu segundo livro sobre esse assunto,Clarice Fotobiografia.2. Como tu avalias a recepção crítica da obra de Clarice Lispector maisrecentemente? Pode-se dizer que há uma renovação do pensamento críticosobre a produção clariceana?A obra de Clarice Lispector, como toda obra de qualidade literária, é inesgotável.Já foi lida por estudiosos pertencentes a várias correntes de pensamento crítico,desde filiações filosóficas, como a do existencialismo sartreano, até linhagensligadas mais especificamente ao estudo das narrativas tanto do ponto de vistaestruturalista quanto pós-estruturalista, além de outros tantos. Eu me surpreendocom a criatividade da crítica. Já li trabalhos vários que mesmo fundamentados em261repertório teórico já utilizado por outros leitores de Clarice, trazem inovações naspropostas de análise e interpretação. Quando a obra é boa, tem essa capacidade dese abrir a novas perspectivas de leitura.3. Como biógrafa de Clarice, tu entendes que o teu trabalho de escrita dabiografia é, de certa forma, um modo de ficcionalizar a vida da escritora? Tuconcordas que escrever a biografia de uma escritora como Clarice éparticipar do jogo de construção de máscaras, próprio de sua ficção?Toda escrita é uma criação. Mas escrever uma biografia não é criar uma ficção.Se, por um lado, biografar implica um ‘modo de ler’ a biografada, por outro lado,justamente por não ser uma ficção, exige compromisso firmado com o repertóriodocumental. Ou seja, não afirmar o que não se pode comprovar. Faz parte, noentanto, da reflexão, lançar hipóteses referentes a fatos que possivelmente podemter acontecido. Mas como hipóteses. Não como ‘verdades’. Não iludir o leitor com‘supostas verdades’ oferecendo-lhe ‘gato por lebre’, ou seja, fatos verídicos nãocomprovadamente documentáveis ou documentados. Pode ser até que adocumentação não seja ‘confiável’, por uma razão ou outra. Aí o questionamentohá de se deter nessa análise do documento, esclarecendo o leitor a respeito de tais‘entraves’ que percorrem, algumas vezes, o percurso da pesquisa.Há de se considerar também que a biografia é uma construção narrativa, cujacriatividade reside em todas as etapas de sua elaboração: tanto na seleção quantona análise e na interpretação dos dados coletados e reunidos ao longo do trabalhode pesquisa e montagem da matéria pesquisada.4. As inúmeras cartas escritas por Clarice podem ser uma fonte parainvestigar a vida e a trajetória da escritora, ou se trata de uma formaliterária que esboça uma persona, tal  como nos seus contos e romances?Como ler as cartas? Como documento? Ou como mais uma ficção, entre outras?Não creio que seja possível generalizar, nem de um lado, nem de outro.No caso das cartas a editores, por exemplo, há dados valiosos para o estudo dahistória das edições. Cartas para amigos, enquanto Clarice morava na Europa eEstados Unidos, esclarecem o fio histórico de sua permanência em cada cidade,dados sobre seus endereços, relações sociais, condições da escrita dos contos eromances, história da recepção, pela escritora, da crítica que se publicava sobre262sua obra, entre tantos outros dados de interesse para a construção de umabiografia.No caso das cartas escritas por Clarice – eu me detenho, a título de exemplo, nasua correspondência ativa com suas irmãs, – há múltiplos aspectos que merecemregistro. Fiel ao gênero epistolográfico, a Clarice-missivista segue as regras dogênero: data, local do emissor, relato de fatos referentes a sua vida, por vezes commenção a sua obra, despedidas finais, assinatura. Nas cartas há, pois, o registro daClarice assumidamente missivista. Mas ela escolhe o que dizer e como dizer aoseu destinatário. E esse território é vasto e tem limites de gênero imprecisos.O ‘recheio’ da carta assume múltiplas configurações. Por vezes, mostra posturasemelhante ao de um diário: relata o que fez desde quando acorda, até o final dodia. Ou usa parcialmente esse formato, detendo-se no que fez numa parte do dia.Quando opta pela descrição de paisagens e lugares vistos e visitados, sua carta seaproxima da literatura de viagens, ou mesmo da crônica de costumes. Ao se deterem detalhes arquitetônicos de uma cidade, a linguagem inclui pormenores típicosda linguagem visual do desenho, da pintura, com jogo de luzes, cores,perspectivas. Ou seja, dentro do repertório ‘literário’, do ‘escrever bem’ cartas, hánão só uma proposta de cunho jornalístico – o do registro do que vê e das reaçõesdiante dos fatos experimentados – mas há também criatividade, embora não pelavia considerada tradicionalmente como ficcional, aquela de ‘inventar’ umarealidade que não é a da pessoa Clarice. Onde termina a Clarice pessoa e começa aClarice escritora nessas cartas?Caminham, por vezes, juntas.5. A família de Clarice era de origem judaica, os pais falavam ídiche efrequentavam a sinagoga no Recife. A própria Clarice estudou em umacolégio hebreu-ídiche-brasileiro. Há uma memória judaica na obra deClarice? Temas como o mistério, a impossibilidade de nomear e a culpa,recorrentes na escrita clariceana, poderiam ser lidos como impregnaçõesjudaicas?Acho que apenas estudiosos especialistas em cultura judaica teriam condição deresponder. Clarice tinha ascendência judaica, sim. Portanto nasceu dentro de umafamília judaica, que seguia tradição de costumes e de religião judaicas. Na suaobra há menções que remetem a passagens bíblicas, como “a repartição dos pães”,a nomes da cultura judaica, como “Macabéa”. No entanto, ao longo da vida, fezsua opção de não seguir a religião judaica e de não aceitar certas premissas depostura cultural judaica. Afirmou, a certa altura, não acreditar na “besteira” deachar que o povo judaico era povo eleito por Deus. E suas opções por263determinados procedimentos no uso da linguagem e mesmo pelos temas que vocêpropõe na sua pergunta – o mistério, a culpa, a coisa que não tem nome, ou seja aimpossibilidade de a linguagem ‘dizer’ tudo - , não seriam questões inerentes aopróprio processo reflexivo de alguém que questiona, a todo o tempo, a sua própriaatividade de escritora?No entanto, sua irmã Elisa, a mais velha, fez percurso diferente. Seguiu a tradiçãojudaica não só pelo culto da religião, mas pela militância cultural, ao manifestarexplicitamente sua adesão à linhagem da cultura dos seus ascendentes.6. Qual é a tua leitura sobre a dimensão social e política da obra de ClariceLispector, muitas vezes referida como intimista, voltada ao universo dossentimentos e sensações do eu?De fato, a literatura de Clarice é voltada para – e repito aqui suas palavras usadasna pergunta – “o universo dos sentimentos e sensações do eu”. Mas é pautadatambém na materialidade dos eventos exteriores, calcada por vezes na realidadecrua que nos rodeia. E se por um lado tem valor estético – ela escreve bem demais– esse caráter estético está intimamente atrelado a uma perspectiva de caráterético, moral e político.Basta examinar a construção de personagens mulheres, por exemplo. Desde seuprimeiro conto publicado na revista Pan, do Rio de Janeiro, “Triunfo” (ou “OTriunfo”, para aqueles que leem um círculo na página da revista como letra nãocomo registro de ornamento gráfico), a mulher procura descobrir e assumir umespaço seu próprio – o seu “quarto próprio”, segundo Virginia Woolf. E mantémesse recorte episódico ao longo de sua produção ficcional. É bem verdade queelabora de modos diferentes esse percurso, com diferentes figuras de linguagem,diferentes cargas de intensidade narrativa. Mas as personagens mulheres tentam,na maioria das vezes, vencer o medo e enfrentar os obstáculos, em processo queculmina na aceitação da solidão e da condição humana.Eis um projeto que, tendo sido construído conscientemente ou não pela autora,mostra para os seus leitores e leitoras como é possível as mulheres construíremsua libertação do jugo paternalista e machista de nossa sociedade.7. Clarice Lispector não se considerava escritora ou, pelo menos, punha emdúvida essa sua identidade. No entanto, escreveu profissionalmente parajornais, tanto crônicas como colunas em páginas femininas, assinadas com264pseudônimos, além de lançar-se no campo literário como escritorareconhecida de contos e romances. Se levarmos a sério a negativa de Claricecomo escritora, o que está em jogo nessa escrita que tenta escapar da própriaidentidade autoral?Clarice preservava a sua liberdade de escrever, sem se prender a sistemas fechadosde pensamentos nem a compromissos formais de posturas e procedimentos. Elevava essa postura com seriedade, problematizando inclusive as diversassituações de escrita que assumia. Quando escreve crônica, nega que seja crônica.Escreve um livro, um romance, dizendo que é um não livro. Dá entrevista senegando a responder perguntas, no que chamei de anti entrevista. E por aí vai. Eprezava o movimento, o questionamento, a crítica, esticando essa sua capacidadeaté o extremo de negar a própria literatura.8. Além da escrita, Clarice se aventurou pela pintura. O que a pintoraesclarece a respeito da ficcionista (e vice-versa)?As duas linguagens se complementam. Passou a cultivar a pintura na década de1970. Não tenho condição de avaliar tais peças do ponto de vista artístico. Seriaassunto para crítico de arte. E há estudos pioneiros e essenciais sobre as relaçõesentre pintura e fotografia. É o caso dos artigos de Lúcia Helena Vianna intitulados“O figurativo inominável: os quadros de Clarice (ou restos de ficção)”, publicadono volume Clarice Lispector: a narração do indizível, organizado por ReginaZilbermann e outros ( e publicado em Porto Alegre, por Artes e Ofícios, EDIPUPe Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, em 1998) e “Tinta e sangue: o diário deFrida Kahlo e os ‘quadros’ de Clarice Lispector.”, na Revista Estudos Feministasv. 11, n. 1, 2003. É o caso também do livro de Ricardo Iannace, Retratos emClarice: literatura, pintura e fotografia, tese defendida em 2004 e publicada pelaEditora UFMG em 2009, em que reproduz em cores essa obra pictórica de ClariceLispector e, tal como propõe o título do volume, examina as relações entre asdiferentes linguagens. Eu, particularmente, considero as pinturas como merosexercícios, na medida em que a autora ali procura uma aproximação do abstrato,tal como na literatura propõe um alvo que é o do silêncio, quando, levada pelapalavra, apreende o sumo da ‘coisa’, a ponto de não precisar mais da palavra paratraduzir esse clímax, que lhe chega então apenas como experimentação do ‘servivo em si’, enquanto matéria viva pulsando.2659. Como você situa Clarice Lispector em relação aos seus pares na LiteraturaBrasileira?Clarice ocupa lugar de destaque no campo da literatura brasileira. Sua literatura seequipara, em termos de alcance estético e de dimensão humanística, aos melhoresescritores da literatura brasileira, considerando aí escritores homens e mulheres. Edesde a década de 1950, sua obra registra um gradativo aumento de repercussãoem outros países, patente pelo número de edições e de repercussão crítica. Se nosanos 1950 teve apenas dois contos publicados em revista norte-americana, nadécada seguinte seu primeiro romance foi publicado em francês, na décadaseguinte teve 6 títulos traduzidos, inclusive para o inglês e o alemão, e o númerode traduções aumentou a tal ponto que em 2010 já havia 185 edições de livrosseus publicados em 20 países. Naturalmente que com a internet sua divulgaçãoteve ainda mais capacidade de divulgação global. Mas cuidado com a Clarice queaparece pela via da internet porque essa nem sempre é a Clarice Lispector.10. Por fim, o que você diria para os leitores contemporâneos de Clarice,sobre a capacidade de sua obra responder às inquietações no nosso tempo?Uma obra de excelência atinge cada um de nós, brasileiros e não brasileiros, aindaque de diferentes maneiras e por diferentes motivos. A obra de Clarice tem essacapacidade de ‘tocar’ o outro pelo seu valor estético e pela sua densidade humana.Mais recentemente, com a nefasta tragédia ocasionada pela pandemia, observoque, pelo menos do meu ponto de vista, uma Clarice ganha mais realce, a devalores ‘humanísticos’, alerta a princípios éticos e morais, que cultiva o respeitoao outro, a sensibilidade diante das minorias vilipendiadas por uma sociedadeinjusta, os temas ligados à fome, pobreza e violência policial, a importância dapreservação da natureza, incluindo aí as plantas e os animais, ou seja, o ser vivo, a“matéria viva” que pulsa.266

Entrevista Nádia Battella Gotlib

https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/download/121290/65953

Entrevista Nádia Battella Gotlib

Abstract

Similar works

Full text

Available Versions

Archives of the Faculty of Veterinary Medicine UFRGS