Descrevemos o caso de uma paciente jovem, portadora de hipertireoidismo por doença de Graves, que durante admissao hospitalar desenvolveu quadro grave de instabilidade hemodinâmica, evoluindo com bloqueio atrioventricular total (BAVT) e necessidade de marcapasso provisório. Após introduçao de droga antitireoidiana e uso de corticóide, houve recuperaçao do grau de bloqueio com 36 horas. Um possível mecanismo, no estado de hipertireoidismo, seria o efeito direto do hormônio tireoidiano no sistema de conduçao ou a infiltraçao linfocitária na regiao do sistema de conduçao cardíaco, considerando a natureza auto-imune da doença de base. Esses mecanismos sao discutidos por nós e por outros autores na literatura

Ana Rosa Pinto QUIDUTE

Carlos Roberto M. RODRIGUES

Eduardo Arrais ROCHA

Eveline G. P. FONTENELE

José Nogueira PAES

Pedro NEGREIROS

Renan Magalhaes MONTENEGRO JUNIOR

Tatiana M. PEREIRA

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209Relampa 78024-440Relampa 200720(3): 209-214.Bloqueio Atrioventricular TotalAssociado a Hipertireoidismo porDoença de Graves(1) Médica Endocrinologista, preceptora da Residência Médica de Endocrinologia do Hospital Universitário Walter Cantídeo da Faculdade deMedicina da Universidade Federal do Ceará; Mestre em Endocrinologia pela USP.(2) Médico(a) responsável pelo Setor de Estimulação Cardíaca do Hospital Prontocárdio, Monte Klinikum e do Hospital Universitário WalterCantídeo da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Especialista em Marcapasso e Arritmias pelo Departamento deEstimulação Cardíaca Artificial (Deca).(3) Professor(a) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.(4) Médica Endocrinologista da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará; Mestre em Endocrinologia pela USP.Endereço para correspondência: Av. Padre Antônio Tomás, 3535 ap. 1301. CEP: 60190-020 – Fortaleza-CE. Brasil – e-mail: eduardoa@cardiol.brTrabalho recebido em 07/2007 e publicado em 09/2007.Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, RodriguesCRM, Paes JN. Bloqueio atrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves,Relampa 2007; 20(3): 209-214.RESUMO: Descrevemos o caso de uma paciente jovem, portadora de hipertireoidismo por doençade Graves, que durante admissão hospitalar desenvolveu quadro grave de instabilidade hemodinâmica,evoluindo com bloqueio atrioventricular total (BAVT) e necessidade de marcapasso provisório. Apósintrodução de droga antitireoidiana e uso de corticóide, houve recuperação do grau de bloqueio com36 horas. Um possível mecanismo, no estado de hipertireoidismo, seria o efeito direto do hormôniotireoidiano no sistema de condução ou a infiltração linfocitária na região do sistema de conduçãocardíaco, considerando a natureza auto-imune da doença de base. Esses mecanismos são discutidospor nós e por outros autores na literatura.DESCRITORES: doença de Graves, bloqueio atrioventricular, hipertireoidismo, marcapasso.Ana Rosa Pinto QUIDUTE(1) Eduardo Arrais ROCHA(2) Renan Magalhães MONTENEGRO JÚNIOR(3)Eveline GP FONTENELE(4) Tatiana M PEREIRA(2) Pedro NEGREIROS(3) Carlos Roberto M RODRIGUES(3)José Nogueira PAES(3)Relato de CasoINTRODUÇÃOPaciente de 32 anos, do sexo feminino, solteira,natural e procedente de Fortaleza-CE. Foi admitida naemergência do Hospital Prontocárdio, em Fortaleza,com queixa de desconforto respiratório progressivo epalpitações havia uma semana. Relatava que no diaanterior dera início a tratamento medicamentoso parahipertireoidismo, com uso de propranolol 40mg, ½comprimido de 12/12 horas e propiltiuracil. Não referiaantecedentes de doença cardíaca ou uso de qualqueroutra medicação além das recentemente prescritas.O exame físico na admissão revelou: 155cm al-tura, 56kg de peso, IMC= 23, freqüência cardíaca de102 bpm, pressão arterial de 130/80mmHg, tempe-ratura axilar de 36,5°, pele quente, tremores finos deextremidades, retração palpebral sem queimose con-juntival ou proptose; aparelho respiratório sem alte-rações; ritmo cardíaco regular, sem sopros; bóciodifuso e volumoso, de consistência fibro-elástica,móvel e indolor à palpação (figuras 1 e 2). O eletro-cardiograma (ECG) inicial constatou taquicardia sinusale BAV 1º grau.210Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, Rodrigues CRM, Paes JN. Bloqueioatrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves, Relampa 2007; 20(3): 209-214.Permaneceu internada para avaliação endocri-nológica, cardiológica e estabilização clínica. O se-gundo ECG, realizado no dia seguinte, demonstroutaquicardia sinusal, com dissociação atrioventricular,freqüência sinusal de 150 bpm e freqüência ventricularde 100 bpm, sendo suspenso o uso do propranolol,iniciado no dia anterior. A paciente foi então transferidapara a unidade de terapia intensiva (UTI) para mo-nitoramento e melhor acompanhamento (figura 3).Nesse mesmo dia, a paciente apresentou piorasúbita do quadro clínico, com mal estar geral e sín-cope. O exame clínico revelou bradicardia severa,hipotensão arterial e um novo eletrocardiograma evi-denciou bloqueio atrioventricular total (BAVT), comfreqüência ventricular de 35 bpm. Como não houveresposta à infusão de atropina, fez-se uso contínuode isoproterenol até a instalação do marcapassoprovisório de emergência (figura 4).A medicação antitireoidiana foi mantida e iniciou-se a administração endovenosa de corticóide paradiminuir mais rapidamente a conversão periférica deT4 em T3 e para um possível efeito antiinflamatório.Após três dias, o marcapasso provisório foi retirado,uma vez que o controle com Holter já não evidencia-va bloqueios atrioventriculares (figura 5).A alta hospitalar ocorreu após sete dias. Naevolução, a dose do corticóide foi progressivamentediminuída, sendo posteriormente realizado tratamen-to com iodo radioativo. Tardiamente, a paciente evo-Figura 2 – Unhas de Plummer (descolamento do leito ungueal presente em pacientes com hipertireodismo.)Figura 1 – Bócio volumoso e difuso.211Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, Rodrigues CRM, Paes JN. Bloqueioatrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves, Relampa 2007; 20(3): 209-214.luiu para hipotireoidismo e atualmente faz uso delevotiroxina, sem apresentar sintomas cardiovascularesem dois anos e meio de acompanhamento. Examesde Holter realizados trimestralmente não demonstra-ram novos distúrbios de condução AV.Exames complementares:Método - Quimioluminescência:T3= 416 ng/dl (60 a 181 ng/dl), T4 total = 23 μg/dl(4,5 a 10,9 μg/dl) TSH<0,011 μIU/ml (0,35 a 5,50 μIU/ml),T4L = 6,67 ng/dl (0,89 a 1,80 ng/dl).Método - Inibição de hemaglutinação:Anticorpo antimicrossomal título 1:1600, anticorpoanti-tireoglobulina título 1:1600.Método – RRA (ensaio radioreceptor)Anticorpo anti-receptor de TSH (TRAB) = 71%.Referência: inibição maior que 10% positivo.VHS 100mm, FAN não reagente, Waaler Rosenão reagente, prova do látex < 20 UI/ml, P-ANCAnão reagente.Figura 3 - Traçado do 2º ECG, revelando taquicardia sinusal, dissociação atrioventricular, freqüência atrial de 150 bpm e freqüência ventricularde 100 bpm.212Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, Rodrigues CRM, Paes JN. Bloqueioatrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves, Relampa 2007; 20(3): 209-214.Ecocardiograma bidimensional: cavidades ventricu-lares normais, fração de ejeção normal. Valvas e fluxostransvalvares normais.Ultra-som da Tireóide:Lobo direito medindo 5,2 X 3,4 X 2,1 cm.Lobo esquerdo medindo 5,0 X 3,4 X 2,1 cm.Ambos os lobos com alterações difusas de textura.Região ístmica espessada, medindo 1cm.Bócio difuso, alterações de textura difusas (figura 1).Cintilografia tireoidiana Tireóide difusamente aumentada de tamanho,apresentando hiperavidez homogênea severa, semáreas hipocaptantes.Após uso de corticóide associado ao antitireoidiano:VHS 19mm, T3=226 ng/dl,  T4 l ivre=1,38TSH<0,011 μIU/ml.Terapêutica definitiva após normalização da funçãotireoidianaRadioiodoterapiaTerapia: 15 mCi de I131 por via oral, em aplicaçãoúnica.DISCUSSÃONa vigência de hipertireoidismo por doença deGraves, a presença de arritmias cardíacas, particu-larmente as taquiarritmias, já é bem documentada1,2.Já o bloqueio atrioventricular total representa umacomplicação bastante rara e potencialmente gravenessa patologia3-7.A doença de Graves é um processo auto-imunecujo “gatilho” ainda é motivo de estudos. Freqüen-temente encontra-se associada a outras manifesta-ções de autoimunidade, como: diabetes mellitus tipo1, doença de Addison e Vitiligo8. Um possível meca-Figura 4 - Traçado do 4º ECG, realizado com a paciente já com marcapasso provisório instalado. Observa-se BAV total e freqüência atrial aindaelevada. Nessa ocasião, o ritmo de escape era de 35 bpm. A freqüência atrial mantinha-se persistentemente elevada, o que permitiudescartar o efeito causal do uso do propranolol 40mg/dia, iniciado 36 h antes.213Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, Rodrigues CRM, Paes JN. Bloqueioatrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves, Relampa 2007; 20(3): 209-214.nismo responsável pelo desenvolvimento de BAVTno hipertireoidismo da doença de Graves seria apresença de um processo inflamatório auto-imuneintersticial no nó atrioventricular. Há na literatura des-crições de infiltrados de linfócitos e histiócitos nomiocárdio de pacientes tireotóxicos, que podem atin-gir o sistema de condução, o nó atrioventricular ouo feixe de His, determinando diferentes graus debloqueios atrioventriculares9.Necrópsias realizadas em pacientes com hiper-tireoidismo revelaram alterações cardíacas, entre elasdilatação ventricular, hipertrofia de miócitos, edemae fibrose intersticial e perivascular, infiltração celulare necrose de miócitos9,10. Acredita-se que a presen-ça de miocardite focal ao redor do nó AV possaresultar em desenvolvimento de BAV10. Outra possi-bilidade seria um efeito direto do hormônio tireoidianona região do nó AV6,10.Alguns autores10,11 já destacaram a importância doacompanhamento sistemático, por meio de eletrocardio-grama, de pacientes portadores de hipertireoidismo,visando a detecção de algum grau de bloqueio cardíacopassível de evoluir para o bloqueio completo, depen-dente de marcapasso. Em 1959, Sandler12 estudou al-terações eletrocardiográficas em pacientes com hiperti-reoidismo, demonstrando que a tireotoxicose, por si só,pode produzir hipertrofia ventricular esquerda e aumen-tar a duração do complexo QRS, embora não tenhaobservado alterações patognomônicas.Figura 5 – Traçado de Holter antes da alta, demonstrando normalização dos bloqueios atrioventriculares.Outros autores3 descreveram o prolongamentodo intervalo PR na vigência de taquicardia induzidapelo hipertireoidismo, quando seria de esperar asua diminuição. Esse fato chamou a atenção para aexistência provável de alguma alteração intrínsecano sistema de condução, associada à patologiatireoidiana ou reforçaria o efeito direto do hormônio.A relação de causalidade entre o prolongamento dointervalo PR com o estado de hipertireoidismo émais evidente, uma vez que, com o controle da doença,o intervalo PR volta ao normal. O grau de severida-de e a duração do estado tireotóxico também pare-cem exercer influência nesses casos.No presente caso, o propranolol atuou mais comoum “gatilho” do que como agente causal do quadrode instabilidade hemodinâmica, em função da baixadosagem (40mg/dia) e o curto tempo de utilização(36h). A elevada freqüência sinusal mantida tambémsugere que houve pouca interferência do fármaco,cuja ação mais pronunciada incide tipicamente so-bre o nó sinusal. Ademais, a meia vida do propranololadministrado por via oral a pacientes com hiperti-reoidismo, não difere do estado de eutireoidismoque costuma ser de 3,7±0,4 hs13,14 e, neste caso, obloqueio total prolongou-se por 36 horas.Este relato reitera a importância da investigaçãosistemática de BAV, por meio do eletrocardiograma,na presença de hipertireiodismo, principalmente antesda prescrição de β-bloqueadores.214Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, Rodrigues CRM, Paes JN. Bloqueioatrioventricular total associado a hipertireoidismo por doença de Graves, Relampa 2007; 20(3): 209-214.Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, RodriguesCRM, Paes JN. Total atrioventricular blockage associated with hyperthyroidism through Gravesdisease. Relampa 2007; 20(3): 209-214.ABSTRACT: We describe the case of a young woman diagnosed with Graves disease, who duringa hospital admission, manifested total atrioventricular (AV) heart block with an unstable hemodynamicstate and required a temporary trans-venous pacemaker; after the introduction of thyroid drugs andcorticoids, normal AV conduction was restored within 36 hours. The direct effect of the thyroid hormoneon the myocardium was supposed to be responsible for the conduction disturbance; it disappeared withthe control of the hyperthyroid state. Another possibility was a lymphocytic infiltration in conduct cardiacsystem, whereas the basis of Graves diseases is autoimmune. Both other authors and us discuss thismechanism in the literature.DESCRIPTORS: Graves disease, atrioventricular heart block, hyperthyroidism, pacemaker.Relampa 78024-440Quidute ARP, Rocha EA, Montenegro Jr RM, Fontenele EGP, Pereira TM, Negreiros P, RodriguesCRM, Paes JN. Bloqueo atrioventricular total asociado a hipertiroidismo por enfermedad deGraves. Relampa 2007; 20(3): 209-214.RESUMEN: Describimos el caso de una paciente joven, portadora de hipertiroidismo por enfermedadde Graves, quien durante admisión hospitalaria desarrolló cuadro grave de instabilidad hemodinámica,evolucionando a bloqueo atrioventricular total (BAVT) y necesidad de marcapasos provisional. Tras laintroducción de droga antitiroidea y uso de corticoide, hubo recuperación del grado de bloqueo con36 horas. Un posible mecanismo, en el estado de hipertiroidismo, sería el efecto directo de la hormonatiroidea en el sistema de conducción o la infiltración linfocitaria en la región del sistema de conduccióncardíaca, considerando la naturaleza autoinmune de la enfermedad de base. Esos mecanismos losdiscutimos nosotros y otros autores en la literatura.DESCRIPTORES: enfermedad de Graves, bloqueo atrioventricular, hipertiroidismo, marcapasos.Relampa 78024-440REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1 Moustaghfir A, Kharchafi A, Belmejdoub G, et al. Cardio-thyroxicosis in the young adult in Basedow disease:report of 30 cases. Ann Cardiol Angeoil 2000; 49(3):161-7.2 Maitland GM, Frixhman WH. Thyroid hormone and cardio-vascular disease. Am Heart J 1988; 135(2): 187-96.3 Stern MP, Duncan GW. Complete heart block complicatinghyperthyroidism. JAMA 1970; 212: 2117-9.4 Campus S, Rappelli A, Malavasi A, Satta A. Heart block andhyperthyroidism. Arch Inten Med 1975; 135: 1091-5.5 Muggia AL, Stjernholm M, Houle T. Complete heartblock with thyrotoxic myocarditis. N Engl J Med1970; 283: 1099-100.6 Eraker SA, Wickamasekaran R, Goldman S. Comple-te heart block with hyperthyroidism. JAMA 1978;239: 1644-6.7 Zargar AH, Bashir MI, Wani AI, Laway BA, MasoodiSR, Lone NA, Jalal S. Reversible complete heartblock in graves disease. J Assoc Physicians India1999; 47(11): 1120-1.8 Fairfax AJ, Leatham A. Idiopathic heart block: associationwith vitiligo, thyroid disease, pernicious anaemia anddiabetes mellitus. Br Med J 1975; 4(5992): 322-4.9 Shirani J, Barron MM, Lydie M, Louis P. Congestive heartfailure, dilated cardiac ventricles and sudden death inhyperthyroidism. Am J Cardiol 1993; 72: 365-8.10 Miller RH, Corcoran FH, Baker WP. Second and thirddegree atrio-ventricular block with Graves disease:A case report and review of the literature. PACE1980; 3: 702-9.11 Archanbeaud-Mouveroux F, Roussanne A, Jadaud J,Dejax C, Blanc P, Laubie B. Prolonged hyperthyroi-dism and recurrent atrio-ventricular block. 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Bloqueio Atrioventricular Total Associado a Hipertireoidismo por Doença de Graves

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