EDITORIAL - OS SENTIDOS DA PALAVRA: A FUNÇÃO DA LINGUAGEM NA (DES)REALIZAÇÃO DO MUNDO

Abstract

“Não gosto de palavra acostumada. A minha diferença é sempre menos. A palavra poética tem que chegar Ao grau de brinquedo para ser séria. Do lugar onde estou já fui embora” Manoel de Barros Certa feita, ao estudar astronomia, li uma enciclopédia que questionou em sua introdução: o que é o universo? A resposta, nada menos pretenciosa: o universo é tudo que existe! Como é possível tudo o que existe caber dentro de uma única palavra? Universo. Concluí que a poesia está contida na ciência através da palavra. A palavra quer traduzir o real, mas é pura imaginação. Cientificamente, para a semiótica, a palavra é a unidade básica da consciência que carrega, ao mesmo tempo, o significado construído pela humanidade e o sentido de um sujeito único e particular (VYGOTSKY, 1989). Para a poesia, a palavra é a conexão com a realidade mais profunda do ser, com os ensinamentos dos antepassados, com as histórias e experiências que sobrevivem na lembrança viva de cada pessoa, nas memórias faladas e registradas em cada rabisco, livro, desenho, diário ou texto. Luria (1987) considera que a estruturação psicológica da linguagem tem papel fundamental na formação da consciência, é produto das formas sociais da vida humana e ocorre simultaneamente produzindo ações que mudam as atividades que se manifestam nas práticas culturais. “Vygotsky chamou essa proposição de estrutura semântica e sistêmica da consciência” (LURIA, 1990, p. 26). Dessa forma, a consciência é possível dentro de um contexto de significados inventados pela humanidade e reinventados por cada pessoa por meio da linguagem. A linguagem, então, é expressão genuína na condição humana e suas formas de expressão são ilimitadas quando inseridas no campo da consciência. De forma distinta, a linguagem da ciência busca entender através de palavras o que a poesia sabe sentir. Na passagem da história do Pequeno Príncipe (SAINT-EXUPÉRY, 1985, p. 89-90), os sentidos da palavra se expressam livremente: As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu, porém, terás estrelas como ninguém. [...] Quando olhares o céu de noite, porque habitarei uma delas, porque numa delas estarei rindo, então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem rir! [...] Terás vontade de rir comigo. E abrirás às vezes a janela à toa, por gosto... E teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Tu explicarás então: ‘Sim, as estrelas me fazem rir!’ E eles te julgarão maluco. O significado da palavra “estrela” carrega diversos sentidos; cada pessoa possui um sentido de estrela (“para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas”) que lhe é particular, mas todos se referem a um só significado, traduzido pela palavra estrela, elaboração linguística acordada socialmente e que torna possível a comunicação. No entanto, esses significados são julgados dentro de nossa sociedade (“eles te julgarão maluco”), estão sempre se confirmando, se destruindo e se renovando em meio às interações sociais e contribuem para o redirecionamento da própria atividade humana (LEONTIEV, 1979). A linguagem exerce múltiplas funções no desenvolvimento da consciência humana. Na perspectiva do desenvolvimento ontogenético, a criança ao nascer já se encontra inserida num ambiente fruto da história social do trabalho humano, que irá ser compreendido por ela a partir de seu contato com o mundo adulto, através das comunicações estabelecidas. Dessa forma, a língua é o meio de comunicação mais eficiente e constituinte das relações humanas, pois permite que ocorra intercâmbio social. Além disso, a linguagem, que reflete uma determinada cultura, é utilizada pela criança como mediadora de sua percepção, meio pelo qual pode nomear objetos, enquadrando-os em categorias e estabelecendo nexos entre essas e outras categorias. Através dela, a criança analisa, generaliza e codifica suas experiências vividas. Nesse sentido, a criança é convidada a participar do mundo adulto, no caminho para tornar-se sujeito de sua própria vida, os adultos e as outras crianças apresentam a linguagem pela qual irá aprender os significados do mundo. Para Jean Piaget (1999), as crianças são pequenos cientistas, a curiosidade e a lógica infantis não separam o real da fantasia e, assim, as palavras estão livres para transitar no mundo imaginário. É comum observar crianças com suas perguntas desconcertantes. A linguagem infantil (des)realiza o mundo, ela cria versões para os fatos, descontrói o real para “transver” outras possibilidades. Adentrar o mundo das palavras e da linguagem permite à criança o acesso ao mundo do adulto, no entanto, quanto da infância fica perdida nesse percurso. Suspeito que a impossibilidade adulta de retornar à infância criou a poesia. A licença poética é dada ao adulto para fugir às normas e regras quando as palavras já não traduzem a existência. Herbert Vianna na composição “Tendo a lua” retrata que “o céu de Ícaro tem mais poesia do que de Galileu”, nisso reside a diferença entre o conhecimento poético/mitológico e o conhecimento científico/moderno. Em que ponto a linguagem científica foi distanciando a racionalidade do ser humano da sua emoção? Quanta poesia há no olhar dos amantes que observam o luar e as estrelas no céu! Ciência e poética, adulto e criança. Em outras palavras, a linguagem é uma brincadeira que a consciência inventou para conhecer o mundo e a si mesma. Rubem Alves (2016) ensina que coisas e palavras se misturam, assim como ciência, arte e mistério. Imagine uma ciência tão absoluta que responderia todas as perguntas. Imagine a arte sem provocar inquietações e arrebatamentos. Não haveria mistério em viver, tudo seria tedioso, mecânico, metódico e previsível. No jogo do sentido de cada palavra, ciência, arte e mistério deveriam reinventar um novo mundo. E as perguntas mais importantes seriam aquelas mais básicas das crianças: “por que esse senhor mora na rua? Onde está a família dele?” O mundo carece de ser (des)realizado para que a humanidade sobreviva, para que o humano não se separe e nem distancie ainda mais de si mesmo e da natureza. Se a ciência se utiliza da palavra para produzir avanços, igualmente poderá utilizar-se para produzir espanto, desigualdade, guerras, violência e exploração. Nesse caso, a ciência poderia criar uma linguagem, a da análise encantada, é possível analisar, decompor, questionar e criticar mantendo o encantamento? Sim, como diz o poeta Manoel de Barros “se a criança muda a função de um verbo, ele delira”, acredito que se uma criança consegue, para o adulto também é possível. A psicologia, então, ofereceria um novo tipo de terapia: a terapia literária. Para Manoel de Barros (2010), “a terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”

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