Dantas de Queiroz, Marcus Vinicius

Cadernos Espinosanos (E-Journal)

v19_2021 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo   iau-usp * ATIQUE, F. Arquitetura Eva-nescente: o desaparecimento de edifícios cariocas em perspecti-va histórica. São Paulo: EDUSP, 2019.** Marcus Vinicius Dantas de Queiroz é Arquiteto e Urbanista, Professor do Curso de Arquite-tura e Urbanismo da Universida-de Federal de Campina Grande vínculo em, ORCI <https://orcid.org/0000-0001-6949-0077>.1Arquiteturas evanescentes,persistentes*        Marcus Vinicius Dantas  de Queiroz**_Em março de 2020, a Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP) lançou o livro Arquitetura Evanescente: o desaparecimento de edifícios cariocas em perspectiva histórica. A obra é de autoria do arquiteto e urbanista Fernando Atique, professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e conta com a apresentação de Flávia Brito (FAUUSP) e o prefácio de Bruno Carvalho (Harvard University). Um rápido exame do volume já é capaz de nos transportar para o universo em pauta. O projeto gráfico, de autoria de Carla Fontana, funciona como um preâmbulo, aproximando o leitor das temáticas abordadas. A capa é ocupada pela fotografia em preto e branco de um antigo edifício em demolição, encoberta por uma sobrecapa translúcida e removível. O movimento entre essas duas superfícies cria situações de maior e menor nitidez do objeto retratado. Ora seus contornos estão vivos, evidentes, ora estão turvos, nebulosos, como uma arquitetura fantasma, a nos assombrar. Esse é o mote do livro de Atique. Em suas cento e noventa e duas páginas, Arquitetura Evanescente trata dos surgimentos, desaparecimentos e ressurgimentos de dois edifícios construídos no município do Rio de Janeiro, na época em que era a capital do país: o Palácio Monroe, erigido nos primeiros momentos do século XX, e o Solar Monjope, erguido na década de 1920. Fruto de apurados levantamento documental, procedimentos metodológicos e exercícios de análise, a obra percorre e esquadrinha as tramas e muitas camadas que engendraram tais processos: os contextos de produção e afirmação das arquiteturas eclética e neocolonial, as fricções com os arquitetos modernos, a formulação das políticas e instituições patrimoniais no Brasil, os jogos de interesses políticos e econômicos sobre o capital imobiliário da cidade, a apropriação social e a constituição de memórias coletivas, a repercussão e mobilização entre setores da sociedade acerca dos destinos de seus ícones urbanos, a persistência das presenças perdidas - tanto nos discursos e imaginários, quanto nos vazios não superados. E é isso o que, de Arquiteturas evanescentes, persistentes 2v19_2021certa forma, garante sobrevida aos dois edifícios, demolidos na década de 1970, em plena ditadura militar. O autor estende as suas compreensões para além dos sumiços materiais e, articulando expressões como memória, trauma, culpa, mágoa, lamento, latência, nostalgia, representação, significação e ressignificação, propõe uma espécie de terapia para laborar as perdas, a não preservação, com os intuitos de ampliar as vozes e as complexidades dos fatos, relativizar conceitos e leituras, discutir responsabilidades e apontar reposicionamentos, de modo a avançar nos entendimentos e nas práticas patrimoniais. De início, a publicação circunscreve o campo teórico no qual pretende estabelecer o debate, historiando, explicitando e problematizando conceitos e casos relativos aos temas das atribuições de valor, da preservação, das demolições e das restaurações e reconstruções. Vasculhar os processos de destruição de edifícios e lugares simbólicos emerge como chave para a revelação de muitas das variadas demãos que encobrem as obras extraviadas, bem como dos circuitos sociais nos quais se inserem. Com essa proposta, o texto segue para uma incursão pela história do “ímpeto demolidor” da sociedade carioca, fazendo paralelos com situações similares em outros países. Intensificadas a partir do período do prefeito Pereira Passos (1902-1906), as lógicas de desmanche no Rio de Janeiro avançaram pelo século XX guiadas pelos pretextos recorrentes da superação do passado, do embelezamento, da salubridade, da circulação viária, do progresso e do desenvolvimento. Tudo costurado pelos não menos assíduos jogos de poder e dinheiro, encobertos pelos véus das retóricas. Longe de terem sido ocorrências pacíficas, sem resistências, os arrasamentos implicaram em uma série de querelas e tensões nos meios políticos e profissionais, desautorizações e desavenças nos órgãos patrimoniais, discordâncias sobre conceitos e valores, sequências de tombamentos e destombamentos, mobilização da opinião pública, envolvimento de setores da sociedade e da imprensa. As falas e pelejas ressoam até os dias de hoje, nos blogs e fóruns de internet voltados para o tema, demostrando como o debate sobre patrimônio histórico não se encerra com a morte física dos corpos edificados. Com isso, Atique introduz o assunto do livro e situa o leitor nos contextos de aparecimento e desaparecimento do Palácio Monroe e do Solar Monjope.A primeira parte da obra é dedicada ao Palácio Monroe, projetado pelo engenheiro militar e coronel Francisco Marcelino de Sousa Aguiar. O capítulo 1 traça um perfil do edifício, desde as circunstâncias de construção até suas apropriações e representações. O chamado “edifício imigrante” foi concebido para ser montado nos Estados Unidos, desmontado, transportado e remontando no Brasil. No exterior, abrigou o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Saint Louis, no estado de Missouri, inaugurada em 1904, ocasião na qual recebeu o Grande Prêmio de Arquitetura. No Rio de Janeiro, aportou no ano seguinte, no final da recém aberta avenida Central. A reconstrução sofreu alterações e adaptações em relação ao original e, após finalizado, acolheu sucessivos usos, como centro de eventos, sede de ministério, Câmara dos Deputados e Senado Federal. Para além de suas origens e capacidade para hospedar funções diversas, o Monroe é um caso interessante para se observar o momento das experimentações técnicas entre os séculos XIX e XX, assim como as acomodações entre as inovações construtivas produzidas pela indústria (estrangeira) e expressões estéticas e práticas projetuais de longa data, algo comumente associado à denominada arquitetura eclética. Cruzando essas questões, o autor aponta que o prédio pode ser visto como um exemplo materializado de alguns dos dilemas da Arquiteturas evanescentes, persistentes 3v19_2021Primeira República, dividida entre seguir os modelos culturais e de desenvolvimento europeus ou estadunidenses. Na dúvida, o resultado foi uma simbiose entre alegorias e ornamentos das tradições italiana e francesa e estrutura metálica da siderurgia dos Estados Unidos, de onde também herdou o batismo, uma homenagem ao antigo presidente James Monroe. Se podemos perceber uma cidade e seus habitantes pelas imagens que elegem como ícones daquele lugar, o Palácio Monroe salta aos olhos pela significativa difusão em cartões-postais, selos, pinturas, revistas, capas de livros, filmes e seriados televisivos. As somas e a profusão dos meios de circulação são indícios das recepções e vinculações que o edifício teve no ambiente carioca, alargando a sua importância para além do objeto em si. Esse talvez tenha sido um dos motivos para que as discussões sobre a sua preservação ou demolição tenham suscitado numerosas reações na década de 1970, reverberantes até a atualidade. No capítulo 2, Fernando Atique explora a temática. Ele visita repartições públicas, adentra em gabinetes governamentais, segue pelas ruas atento às notícias e cartas enviadas aos jornais, escuta os fóruns de internet em busca de pistas que componham o cenário que culminou com o arrasamento do prédio, e as subsequentes lamúrias. A apuração revela teias emaranhadas. É curioso, e contraditório, que a campanha pela demolição do Monroe tenha surgido como reação a um documento que preconizava a sua preservação, elaborado por um conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e referenciado em preceitos da Carta de Veneza (1964). A opinião favorável à manutenção do palácio não foi fato isolado. Contou com o apoio de setores da sociedade e de várias entidades de classe, como o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o Clube de Engenharia e a Associação dos Advogados. Ainda assim, um parecer de Lúcio Costa contrário à preservação gerou cisões dentro do IPHAN, alimentando discussões e moldando argumentos que ganharam a imprensa, em especial o jornal O Globo. A imprensa, aqui, analisada não como agente neutro, mas como sujeito ativo e intermediador de interesses, nesse e em outros processos de viés preservacionista. A repercussão na mídia provocou movimentos nas instâncias da administração pública, em prol da permanência e do desaparecimento do Monroe. Porém, apesar do envolvimento de parte da população em sua defesa, o imóvel foi para o chão no ano de 1976. A partir daí, o texto salta no tempo e traz um garimpo de posts e comentários publicados sobre o assunto em blogs e sites que discutem o patrimônio histórico carioca. Esse é um dos pontos mais interessantes do livro, fazendo-nos entender como os recentes fóruns digitais são espaços privilegiados para observação e estudo de como grupos de pessoas, especialistas ou não, podem se apropriar e ecoar aspectos do patrimônio e da memória urbana – fato que merece maior atenção de pesquisadores e órgãos patrimoniais. Sobre o caso da demolição do Palácio Monroe, são comuns posições indignadas e de protesto, que tendem a lamentar a perda e a romantizar o passado, por vezes exigindo uma espécie de vingança ou reparação histórica, como a reconstrução do próprio edifício. Alguns requentam argumentos e expressões correntes no auge do debate da década de 1970, ressuscitam personagens envolvidos com a trama, lançam especulações e teorias da conspiração, tomam lado na contenda. Outros reforçam suas concordâncias com a demolição. Com esse material em mãos, Atique expande e aprofunda a sua análise, problematizando as falas e costurando-as com sólido escopo teórico. A primeira parte da obra termina com um rico conjunto de imagens, que narra os diversos momentos e as muitas representações que teve o Monroe, da Feira Arquiteturas evanescentes, persistentes 4v19_2021Internacional de Saint Louis a seu melancólico fim (material), mutilado, agonizante e com as entranhas expostas em praça pública.A segunda parte do livro volta-se para o Solar Monjope, erguido entre 1926 e 1928, e segue estrutura similar. O capítulo 3 traça o percurso que culminou com a construção do edifício-manifesto em defesa da “arquitetura tradicional brasileira”, ou do que a historiografia denominou de neocolonial. A casa, localizada às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, foi construída para residência do médico, crítico, colecionador de arte e agitador cultural José Mariano Carneiro da Cunha Filho, um dos maiores idealizadores e propagandistas da arquitetura neocolonial no país. Tal fato entrelaça obra e proprietário, vinculando a realização aos históricos familiar, intelectual e social do referido personagem. Filho de senhores de engenho em Pernambuco, o engenho Monjope, não por acaso homenageado no batismo do solar, José Mariano dedicou parte da vida, notadamente os anos 1920 e 1930, elaborando, defendendo e difundido determinados valores arquitetônicos alicerçados no passado e em pretensas tradições coloniais, de origem portuguesa. É curioso observar como as ideias de tradição, memória, nostalgia e saudade do passado alimentaram discursos nacionalistas e regionalistas no início dos novecentos, e como o caso do Monjope conecta essas duas pontas, estabelecendo diálogos com as análises que o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior faz em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes, e que merecem maior exploração do campo da arquitetura e urbanismo. Para além disso, Atique nos mostra como o Solar Monjope refletiu o prestígio e as intensas movimentações de José Mariano Filho no meio cultural carioca, em especial junto aos arquitetos. O projeto do edifício é representativo nesse sentido. Envolveu concurso, bilhetes trocados com Lúcio Costa e concepções de vários profissionais. O resultado foi uma síntese de soluções cuja autoria José Mariano Filho não raro atribuía a si.O capítulo segue mapeando o circuito social da casa, até a década de 1960. Após concluído, o Monjope frequentou as páginas de jornais e revistas nacionais e internacionais, abrigou festas e recepções da alta sociedade, serviu de cenário para filmes, fotonovelas e álbuns de casamento, recebeu estudantes, professores, personalidades e caravanas de diversos países, por vezes como esforços orquestrados para a disseminação dos preceitos que guiaram a obra. Através dessas interlocuções, foi possível dilatar a leitura do projeto, captar impressões e apropriações dos espaços, estender as compreensões acerca das relações estabelecidas entre o edifício e a cidade. A penetração do solar no ambiente e no imaginário carioca foi proporcional às reações dos anos 1970 nos debates sobre sua preservação ou demolição. O quarto e último capítulo aborda o assunto. Embora distinto, o caso guarda muitas semelhanças com o episódio do Palácio Monroe. Mais uma vez, a trama envolveu técnicos do IPHAN, entidades de classe, imprensa, setores da sociedade e a participação relevante do arquiteto Lúcio Costa. Com esmero, Fernando Atique repete o método de busca, exame e manipulação das fontes, conduzindo o leitor pela intricada trama. Aqui, ficam evidentes as violências do poder político e econômico, do mercado imobiliário e de seus sócios e subordinados para fazer valer os seus interesses de ocasião, e o desprezo pelas opiniões de parte considerável de técnicos e grupos sociais, inclusive moradores da área, que se posicionaram, com sólidos argumentos, a favor da preservação do imóvel, da paisagem e da ambiência do entorno. Não teve jeito. Em 1974, o Solar Monjope foi praticamente todo destruído, restando como legado das mobilizações preservacionistas boa parte da vegetação pré-existente e a limitação do Arquiteturas evanescentes, persistentes 5v19_2021gabarito de altura para novas construções na região. O texto termina com a análise das pelejas digitais, capturadas de sites e blogs que resgatam aspectos da memória do Rio de Janeiro. Novamente, os internautas se envolvem em discussões tomados por sentimentos de raiva e lamento pela perda, questionam as figuras de Lúcio Costa e José Mariano Filho, reproduzem a antiga polarização entre arquitetos modernos e neocoloniais. Na sequência, uma preciosa seleção de imagens ilustra e soma narrativas aos temas discorridos. Se os arrasamentos do Palácio Monroe e do Solar Monjope não puderam ser evitados, eles se constituíram como deflagradores importantes de processos preservacionistas, com o envolvimento da sociedade. Nas considerações finais, o autor discute tais heranças e suas repercussões nas políticas, instituições e legislações patrimoniais das décadas subsequentes. Nesse trajeto, fica clara a contribuição que a perícia dos desaparecimentos e das recepções das perdas pode oferecer aos variados campos do conhecimento que têm o patrimônio como objeto de investigação e trabalho. Mais especificamente para a área da arquitetura e do urbanismo, isso ocorre com a problematização da historiografia brasileira, notadamente a partir da figura e das concepções e práticas de Lúcio Costa. Assim, por tudo que foi exposto, Arquitetura Evanescente: o desaparecimento de edifícios cariocas em perspectiva histórica é obra fundamental para os que querem expandir e aprofundar as compreensões nas esferas preservacionistas. Parafraseando Fernando Atique: arquiteturas evanescentes? Com certeza, não. De muitas formas, elas persistem. Recebido    [Fev. 01, 2021]Aprovado  [Fev. 15, 2021]

Architectures évanescentes et persistantes

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