DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Trad. Márcia Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016

Miranda, Juliana Aparecida dos Santos

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Virginie Despentes é uma escritora francesa que iniciou sua carreira de escritora aos 24 anos com o romance Baise-moi (Me fode). Com uma escrita visceral carregada de transgressividade, Despentes utiliza sua experiência como ex-stripper e ex-prostituta para adentrar no mundo da escrita erótica através de uma perspectiva feminista e sem pudores. No ano de 2000, Despentes roteiriza e dirige o filme homônimo ao seu primeiro livro, filme este que suscita polêmicas e críticas contra seu modo de representar a sexualidade. Em sua bibliografia estão Les Chiennes savantes, 1995; Les jolies choses, 1998, Teen spirit, 2002; Trois étoiles, 2002; Bye Bye Blondie, 2004; King Kong Théorie, 2006; Apocalypse bébé, 2010 e a trilogia Vernon Subutex, 2015...
[Recebido: 04 nov. 2017 – Aceito: 01 mar. 2018

MIRANDA, Juliana Aparecida dos Santos

Portal de Periódicos da UNEB

  Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 6, n. 1, 2018 | 145| RESENHA TEORIA KING KONG: UMA REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE SEXO E VIOLÊNCIA DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Trad. Márcia Becha-ra. São Paulo: n-1 edições, 2016.  Juliana Aparecida dos Santos Miranda1  Virginie Despentes é uma escritora francesa que iniciou sua carreira de escritora aos 24 anos com o romance Baise-moi (Me fode). Com uma escrita visceral carregada de trans-gressividade, Despentes utiliza sua experiência como ex-stripper e ex-prostituta para adentrar no mundo da escrita erótica através de uma perspectiva feminista e sem pudores. No ano de 2000, Despentes roteiriza e dirige o filme homô-nimo ao seu primeiro livro, filme este que suscita polêmicas e críticas contra seu modo de representar a sexualidade. Em sua bibliografia estão Les Chiennes savantes, 1995; Les jolies choses, 1998, Teen spirit, 2002; Trois étoiles, 2002; Bye Bye Blondie, 2004; King Kong Théorie, 2006; Apocalypse bébé, 2010 e a trilogia Vernon Subutex, 2015.  Quando Virginie Despentes dispara sua visão sobre o objeto sexo somos forçadas a revisitar tudo que achamos que sabemos sobre a tríade que compõe tal objeto: a sexualida-de, o estupro e a prostituição. O seu conhecimento de causa reflete em uma perspectiva fria e sensata acerca de tabus que se desenvolvem a partir de estigmas sociais capazes de afetar homens e mulheres. É sobre essas questões que seu livro,                                                                     1 Mestranda em Crítica Cultural pelo Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia. Endereço eletrônico: julianasanmi@gmail.com  146 | Literatura, Resistência e Revolução Teoria King Kong, disserta. Sem desculpas e sem reclama-ções, como afirma logo nas primeiras páginas, Despentes desenvolve ao longo de 7 pequenos capítulos uma reflexão crítica sobre a violência imposta ao corpo feminino sob a ótica da demonização social do sexo e sua consequência. Assim, por meio de um relato autobiográfico, Despentes nos surpreende com um olhar atento e diferenciado sobre ques-tões que costumam ser silenciadas, mas que ela escancara a fim de expor os detalhes pouco, ou nada, explorados sobre esta temática, tudo isso através de um singular estilo punk rock. No primeiro capítulo do livro, intitulado de Vícios frené-ticos, Virginie Despentes se posiciona demarcando muito bem seu lugar de fala e a direção de sua escrita, desafiando os arranjos da feminilidade e de todas as características a ela atribuídas. A formidável beleza que se espera de uma mulher é questionada pela autora e a ausência deste atributo é vista por ela como uma rota de fuga para sua existência. Assim, a autora defende o direito de existir para além dos padrões impostos, mas de forma consciente, superando o modo co-mo os homens, e até mesmo algumas mulheres, através da literatura, por exemplo, insistem em marginalizar essa exis-tência. Para ela, aceitar as nuances que estão fora do padrão esperado para a feminilidade é encontrar-se com a ruptura de gênero, algo tão assustadoramente libertador. Deste mo-do, Despentes assume seu lugar de virilidade, aceitando-se enquanto uma mulher ambiciosa, mas não sedutora. Por outro lado, a autora compreende que este lugar não é só de-la, uma vez que a noção de feminilidade limita as mulheres e as colocam mais a margem do que no centro. Ao refletir so-bre as mulheres socialmente rejeitadas, Despentes leva-nos a concluir que existem muitas coisas em comum entre as putas e as admiráveis donas de casa, mas que somos constante-mente levadas a negligenciar tais semelhanças.    Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 6, n. 1, 2018 | 147| O capítulo seguinte, Eu te fodo ou você me fode?, traz uma reflexão sobre o problema instaurado nos papéis de gênero, principalmente no que diz respeito a revolução sexu-al feminina. As conquistas alcançadas pelo movimento femi-nista até a década de 1970 permitiram as mulheres das déca-das seguintes uma maior liberdade sobre seu próprio corpo. Neste contexto, Despentes, nascida em 1969, relata o modo como seu comportamento, bem como das jovens da época, era reflexo de uma geração que começava a refletir e questi-onar os papéis estabelecidos para cada gênero.  Virginie Despentes é taxativa ao dizer que a execução inevitável da maternidade, bem como o trabalho doméstico “volunt|rio” fazem parte do terrorismo físico e moral impos-to ao sexo feminino. Neste ponto, a autora discorre sobre a infantilização do indivíduo, usando, para isso, a metáfora da maternidade para enfatizar a importante tarefa de doar-se ao outro, mas, sobretudo, o poder de decidir pelo outro. Este mecanismo age tanto sobre a mulher, quanto sobre o ho-mem, uma vez que o homem é cooptado pelo Estado para ser a força de trabalho e consumidor, enquanto a mulher submete-se a subserviência. Ambos os corpos estão perten-cendo a outrem. É neste aspecto que Despentes elucida que o homem tem tanto a perder dentro desta engrenagem mu-tiladora, composta pelo machismo e pelo capitalismo, quan-to a mulher. Com a diferença de que a mulher, de modo ge-ral, tem consciência da opressão que sofre, enquanto o homem é levado a acreditar em uma superioridade natural que o faz ser o dominador, sem se dar conta de que ele é apenas um instrumento do capitalismo. O terceiro capítulo, Impossível estuprar esta mulher cheia de vícios, promove uma discussão ponderada e cheia de bifurcações a respeito do estupro. Para isso, Despentes re-torna à 1986, quando ela e uma amiga, sem qualquer dinhei-ro para uma viagem de Londres à Paris, decidem fazer este trajeto por meio de carona. Depois de um dia inteiro de via- 148 | Literatura, Resistência e Revolução gem chegaram na cidade de Calais, na França, onde aguar-davam uma carona para seguir até Paris, quando três rapazes em um carro se dispuseram a ajudá-las. Despentes recorda que a primeira reação delas foi negar a oferta, no entanto, foram convencidas pelos gentis rapazes de que a ajuda seria melhor do que passar a noite expostas em um estacionamen-to qualquer. Subiram no carro, mas não demorou muito para se arrependerem: “no momento em que as portas se fecham, no entanto, sabemos que fizemos uma estupidez” (p.28).  O momento a seguir vem como uma flechada, as com-panheiras de viagem são estupradas sob a mira de uma es-pingarda dos três “gentis” rapazes. As reflexões que Despen-tes faz a partir deste relato apesar de soarem singular não é nada exclusivo, ao contrário, faz jus a realidade da maioria, senão todas, as vítimas de estupro. No primeiro momento, a autora conclui que estupradores não se identificam como estupradores. Os rapazes que as estupraram sentiram-se no direito que cometer tal ato, talvez pelas roupas curtas que vestiam, pelo pedido de carona de madrugada, por deduzi-rem que era exatamente o que elas queriam ou por qualquer outro motivo.  O segundo ponto colocado por Despentes a respeito do modo como a sociedade lida com o estupro é o fato de que a palavra da vítima não vale nada diante da pala-vra do agressor. As justificativas utilizadas para invalidar a acusação são muitas e todas elas apontam para um determi-nado comportamento da vítima. Isto nos leva até o terceiro ponto: não se fala do estupro, nem a vítima, nem o agressor. O quarto ponto colocado por ela se resumo no contrato im-posto pela sociedade entre a vítima e o agressor:: ninguém fala sobre o estupro. Em Dormindo com o inimigo, o quarto capítulo de seu livro, Virginie Despentes propõe uma reflexão sobre a prosti-tuição e as contradições de uma sociedade hipócrita que dis-crimina a prostituta ao passo que libera o homem que a pro-cura de qualquer julgamento. A discussão gira em torno da   Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 6, n. 1, 2018 | 149| falta de autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, consi-derando a problemática de que mesmo para uma mulher adulta é negado o direito de vender aquilo que deveria ser ofertado gratuitamente. “Trocar um serviço sexual por di-nheiro, mesmo em boas condições, mesmo voluntariamente, é um atentado contra a dignidade da mulher” (p. 48), afirma a autora, levando-nos a compreensão de que o que pesa na questão da prostituição não é a suposta situação degradante do trabalho ou as violências que podem ocorrer contra essas mulheres, mas sim o estigma em sua reputação, afinal, a mulher não é dado nem o direito de fazer sexo, que dirás o direito de cobrar por ele.  Ao longo deste capítulo, Despentes narra a sua trajetó-ria enquanto prostituta, enfatizando que embora este serviço custasse a sua dignidade perante a sociedade, não havia na-da de terrível nele, o que contrariava todas as histórias de prostitutas coitadas que costumam circular entre homens e mulheres respeitáveis. Despentes nos choca quando afirma que a sua experiência como prostituta ajudou-a a superar o trauma do estupro, pois levou-a a compreender que a sexua-lidade masculina é sempre posta como irracional, ameaçado-ra e criminosa e são tais argumentos que têm contribuído para que a cultura do estupro permaneça operando de ma-neira tão eficaz, fazendo com que os homens acreditem que seu desejo sexual deve ser priorizado mesmo diante da con-testação da mulher. O quinto capítulo intitulado de Pornofeiticeiras é um re-lato em defesa da pornografia. Em seu discurso, Despentes desconstrói os argumentos utilizados para convencer as pes-soas de que a pornografia é algo extremamente nocivo para a sociedade. Nesta perspectiva, ela levanta interessantes ques-tões que demonstram que a demonização do pornô é fun-damentalmente a expressão de uma sexualidade reprimida que reflete uma sociedade que tem medo ou que não sabem lidar com os próprios desejos. A autora evidencia que aquilo  150 | Literatura, Resistência e Revolução que nos provoca excitação encontra-se escondido em uma zona cinzenta pouco explorada. Isto porque sentir-se excita-do é uma experiência que deve ser mantida sob controle, sendo este o motivo de manter nossos desejos em segredo.  O perigo da quebra deste sigilo se dá ao percebemos que existem dispositivos, que agem diretamente em nosso inconsciente, capazes de despertar nossos desejos mais ocul-tos e de fazer o corpo responder a eles de maneira involuntá-ria. É neste aspecto que reside o interesse pela pornografia enquanto gênero cinematográfico. Ao acessar tais conteúdos as pessoas tendem a não racionalizar as sensações, ali o in-consciente age sem censuras e neste intervalo, entre a exci-tação e o gozo, as fantasias sexuais secretas de cada um se manifestam sem pudor. O principal problema levantado por Despentes acerca das produções pornográficas é o fato delas serem feitas basi-camente por homens e para homens. Neste contexto, as personagens construídas quase sempre representam uma sexualidade masculina: “ela quer sexo, n~o importa com quem, ela quer em todos os buracos do corpo e goza todas as vezes. Como um homem, se ele tivesse um corpo de mulher” (p. 85). Assim, a indústria pornô se torna um lugar de violên-cia para com as atrizes, que por diversas vezes são expostas a situações de agressão para cumprir um determinado contra-to. Não há preocupação com a dignidade da atriz pornô, nem sobre o estigma que carregará por esta profissão ao longo da vida. De acordo com a autora, não existe reconversão possí-vel após iniciar a profissão, e a mulher que se predispõe a ser atriz pornô sabe disso. A situação da mulher dentro da indús-tria pornográfica não é muito diferente mesmo quando ela decide ocupar o cargo de direção ou roteiro. Para os homens “é impossível ter sido uma criatura sulfurosa e depois de-monstrar invenç~o, inteligência e criatividade” (p. 82), e isto ela constatou durante a produção do filme, escrito e dirigido por ela, Baise-moi.    Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 6, n. 1, 2018 | 151| O sexto capítulo de seu livro recebe o nome de King Kong Girl, e faz referência direta a versão do filme King Kong, dirigida por Peter Jackson em 2005. Nas páginas iniciais do capítulo, Despentes, através de elementos contidos na narra-tiva do filme, explora uma série de significações pertinentes. Primeiro ela afirma que, embora a figura do King Kong seja representada como sendo masculina, não há em cena nada capaz de atribuir-lhe gênero qualquer, podendo estar o – ou a -  King Kong fora da obrigatoriedade do gênero binário. Além disso, ela observa que assim como King Kong as outras cria-turas que habitam a misteriosa ilha não possuem aspectos nem de machos nem de fêmeas, o que a leva a concluir ser a ilha um lugar de sexualidade polimorfa e poderosa. O poder também é atribuído à figura de King Kong, um ser indomá-vel, indomesticável. Seguindo essa análise, o herói do filme, que aparece para livrar a protagonista dos poderes de King Kong, representa a heterossexualidade compulsória e limita-dora. No entanto, este herói não quer apenas libertar a pro-tagonista do perigo, seu interesse maior é poder controlar King Kong e assim expô-la aos moradores da cidade. Para Despentes, a ação do herói é uma evidente representação do desejo, não de extinguir essa sexualidade polimorfa, mas de domesticá-la, controlá-la e mantê-la na clandestinidade.  A tentativa de domesticar a sexualidade é um proble-ma para a sociedade e a mulher assume grande parte desta responsabilidade, principalmente quando se recusa a usar seu sexo da forma que lhe foi ensinada. Em sua narração se-guinte, Despentes discorre sobre como se sentiu quando decidiu deixar a prostituição, em se relato ela afirma que da feminilidade lhe restou apenas alguns acessórios, mas que neste trajeto ela pôde compreender que a feminilidade pode ser reinventada a seu modo: “Ser punk significa forçosamen-te reinventar a feminilidade [...] Tem tudo a ver com o punk, nunca fazer o que te mandam” (p. 97). A reinvenç~o da femi-nilidade, por sua vez, não configura em domesticação do sexo, assim, Despentes afirma que continuou a sofrer críticas  152 | Literatura, Resistência e Revolução possessas tanto pelas suas escritas sobre sexo, quanto pela sua postura de assumir ter sido vítima de estupro, para os que a julgava ela falhará na missão de reinvenção da feminili-dade.  Boa sorte, meninas é o sétimo e último capítulo que compõe esta autobiografia. Despentes inicia este capítulo falando sobre a hostilidade com a qual a mulher é tratada pelo homem. Neste contexto, ela recorre a uma carta assina-da pelo escritor Antonin Artaud em que ele afirmava, em tom romântico, que necessitava de uma mulher que estivesse sempre em casa e que pudesse tomar conta dele integral-mente. Através disso, ela constrói um argumento sobre co-mo, ao contrário da hostilidade com que são tratadas pelos homens, as mulheres tendem a ser amistosas e caridosa para com eles. Até mesmo quando se posicionam contra o patriar-cado o fazem quase como se pedissem licença, como se ti-vessem a consciência da suposição de que sem a permissão masculina as mulheres desapareceriam. O fato é que a ideia de sexo frágil se disseminou cultu-ralmente e criou um lugar supostamente seguro, mas que na realidade mais violenta do que protege, para abrigar as mu-lheres. Por consequência, a sua emancipação se tornou um problema para seus dominadores que passaram a atribuir a elas qualquer declínio que, por ventura, ocorresse no cenário capitalista. Para os homens o lugar da mulher é na subservi-ência e a libertação feminina, os deixam irritados. Neste sen-tido, Despentes ressalta que há um aspecto do qual os ho-mens não se dão conta: toda vantagem que ele busca ter sobre as mulheres o faz se afundar ainda mais nas artima-nhas do capitalismo.  [Recebimento: 04 nov. 2017 — Aceito: 01 mar. 2018]  

Teoria King Kong: uma reflexão crítica sobre sexo e violência

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