Resenha do livro:Iqani, M. Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste. Nova York: State University of New York Press, 2020.Book review:Iqani, M. Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste. Nova York: State University of New York Press, 2020

Del Vecchio-Lima, Myrian

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Book review:Iqani, M. Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste. Nova York: State University of New York Press, 2020.Resenha do livro:Iqani, M. Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste. Nova York: State University of New York Press, 2020

Biblioteca Digital de Periódicos da UFPR (Universidade Federal do Paraná)

 Vol. 60, p. 829-833, jul./dez. 2022. DOI: 10.5380/dma.v60i0.85054 e-ISSN 2176-9109Desenvolv. e Meio Ambiente usa uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional 829A cultura do consumo e o lixo como produto criativoThe culture of consumption and waste as a creative productIqani, M. Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste. Nova York: State University of New York Press, 2020.Myrian DEL VECCHIO-LIMA1*1 Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.* E-mail de contato: myriandel@gmail.comResenha recebida em 11 de março de 2022, versão final aceita em 31 de março de 2022, publicado em 23 de dezembro de 2022.A abordagem cultural é ainda rara, especial-mente no Brasil, no que se refere ao enquadramento da ampla temática que abrange as problemáticas sobre os resíduos produzidos pela sociedade, o po-pular lixo. No entanto, esse foi o enfoque escolhido por Mehita Iqani, professora de Estudos de Mídia na Universidade de Witwatersrand, em Johannes-burg, na África do Sul, para o seu livro “Garbage in popular culture: consumption and the aesthetics of waste” (O lixo na cultura popular: consumo e a estética do desperdício, em tradução livre). A obra foi publicada em 2020 pela State University of New York Press, oficialmente lançada online pela autora no final de 2021, em plena crise pandêmica da Covid-19, e que ainda não tem tradução para a língua portuguesa. A pesquisadora tem amplo co-nhecimento quando se trata da abordagem do con-sumo, tendo já publicado anteriormente Consumer Culture and the Media’s Magazine in the Public Eye (2012) e Consumption, Media and The Global South: Aspiration Contested (2016), ambos editados pela Palgrave Macmillan, em Londres.Ao reconhecer como ainda teoricamente insu-ficientes as discussões acadêmicas e políticas sobre o papel da fase de pós-consumo das mercadorias no cenário neoliberal do capitalismo, com ênfase em como este papel aparece nas narrativas midiáticas, a autora apresenta as formas como o lixo penetra, DEL VECCHIO-LIMA, M. A cultura do consumo e o lixo como produto criativo830por meio destas narrativas, no imaginário popular, enquadrando e definindo um discurso cultural e as práticas daí decorrentes. De forma ampla, o livro busca entender o que o lixo representa no âmbito da cultura do hiperconsumo contemporâneo, con-forme Lipovetsky (2007) denomina esta fase de desperdício extremo, que podemos inserir como parte considerável das ações produtivas humanas que marcam o Antropoceno (Veiga, 2019) – sim, as “práticas excessivas” desse hiperconsumidor “de-sequilibram a ecoesfera” (Lipovetsky, 2007, p. 13). O ponto central da obra de Mehita Iquni tece a explicitação das interfaces disciplinares entre a cultura global de consumo e seu volume dantesco de resíduos; as políticas culturais sobre o lixo na sociedade mundial; e as narrativas culturais midiáti-cas que descrevem, tensionam, estetizam e propõem um discurso da ação – pela arte, pelo cinema ou pelo entretenimento – sobre esse entrelaçamento temático. A autora estabelece uma contribuição original ao apresentar produtos de comunicação popular que abordam a questão do consumo, seus resíduos e desperdícios. Assim, é pela via das produ-ções e práticas criativas simbólicas de uma cultura midiática intensiva que se constroem as reflexões e discussões propostas no livro.   A pesquisadora afirma que as intervenções criativas de artistas que trabalham com o lixo na esfera pública ou privada são “particularmente poderosas”, pois, ao redefinir os resíduos em seus trabalhos, transformando-os em um meio para suas obras de arte e formas de entretenimento, “estes artistas fazem uma dupla afirmação sobre o excesso de resíduos no mundo social e natural, assim como sobre as novas possibilidades para a comunicação, reflexão e diálogo que são criadas por meio do lixo” (p. 159). Ela entende que por meio de seus “waste--works” os artistas, produtores de filmes, ativistas, jornalistas, designers e empresários nos relembram sobre a materialidade do lixo, mas também enfati-zam como a comunicação humana pode expressar variadas formas, incluindo o lixo como modalidade comunicativa e, portanto, como meio de construção de sentido no mundo.Iqani oferece nas cerca de 200 páginas da edição norte-americana uma contribuição inovadora e de amplo interesse para estudiosos da vasta e in-terdisciplinar área de meio ambiente e desenvolvi-mento, assim como para quem transita pelo campo da Comunicação e dos estudos midiáticos. O texto interessa ainda a leitores que buscam simplesmente conhecer o conjunto de fenômenos culturais relacio-nados ao ciclo do consumo irrefreável que aportou no mundo desde o início do século XX e da histórica e cada vez mais acelerada produção do lixo e seu descarte por todos os cantos do planeta. A enxurrada de resíduos derivados dos atos de consumo não tem fim, apesar dos discursos e práticas de estímulo ao reciclável, ao “lixo zero”, ao reaproveitamento e reutilização de objetos e seus fragmentos que, ao se despirem da aura de sedução que exibem no ato da compra e do consumo, se tornam lixo, traste, refugo, restos, cacarecos, etc. Tais termos às vezes intercambiáveis no senso comum têm significados específicos do ponto de vista das concepções teó-ricas, técnicas e funcionais.Na busca de respostas para a questão “Por que o lixo importa?”, Mehita Iqani, que já foi professora em Indústrias Criativas no King’s College London, ao partir da tríade globalização-consumo-mídia, situa nessas instâncias a ponta inicial do processo de produção de resíduos de todos os tipos para que se chegue à ponta final, pelo descarte, desse círculo nada virtuoso. É importante registrar que esta ponta Desenvolv. Meio Ambiente, v. 60, p.829-833, jul./dez. 2022. 831final é extremamente relativa: a sociedade não sabe o que fazer com o lixo atômico e se depara com o ciclo infernal dos plásticos e óleos despejados nos mares e outros corpos d’água e que se infiltram nos organismos que vivem nestes habitats, alterando toda a cadeia alimentar; o mesmo nonsense se aplica à degradação dos componentes eletrônicos e resíduos de fármacos, entre outros, em águas e solos urbanos ou rurais. Contudo, o livro não envereda por este ca-minho ecossistêmico já bastante debatido. O texto caminha por meio de estudos de caso para a des-crição, exame e análise dos agenciamentos e ações em instâncias culturais consideradas populares, que mostram esse aspecto pré-apocalíptico por meio tanto do consumo como do descarte, configurando, por fim, cenários criativos em diversos aspectos:1) Nos ativismos e arte-ativismos midiatizados em narrativas focadas nas subcategorias de redu-ção, reuso e reciclagem do lixo, como é o caso da protagonista de mídia social em New York, Lauren Singer, a “Zero Trash Girl”, que visibiliza seu co-tidiano como consumidora que não gera nenhum resíduo; salienta o exemplo de produções de arte com uso do lixo ou de materiais recicláveis/recicla-dos, como a  obra artística multimídia de Francois Knoetze, da África do Sul (no Brasil, podemos citar o documentário “Lixo Extraordinário”, sobre a obra construída com restos de sucata do artista Vik Mu-niz; ou os trabalhos pictóricos iniciais que reúnem sucata coletada nas ruas do artista José Antonio de Lima, de Curitiba, PR); registra ainda exemplos de campanhas de reciclagem via Instagram e outras redes sociais digitais. 2) No consumo de mercadorias de luxo e formas de hedonismo, chamadas por Iqani de “narrativas do prazer”, comuns em publicidades, revistas e desfiles de moda ou em formas de entre-tenimentos populares em eventos de música como o Glastonbury Festival no Reino Unido, ou o Afrika Burn na África do Sul, que constrói obras de arte temporárias em um espaço semi-desértico que, ao final, são queimadas. Pode-se falar aqui ainda  do Rock in Rio, no Brasil. Destaca ainda práticas de turismo de luxo, que produzem narrativas sobre formas de prazer apreciadas pelos consumidores mais ricos do planeta, descrevendo como o lixo gerado pelas práticas deste “niilismo feliz” (p. 33) aparece também nas narrativas midiáticas que lamentam a “poluição” de lindas paisagens, como praias tropicais onde se geram montanhas de lixo.3) Em narrativas que se apropriam do binômio consumo de mercadorias/serviços-produção de lixo, de maneira separada ou conjunta; e 4) em filmes como Deepwater Horizon (2016), dirigido por Peter Berg – em português Horizonte Profundo: desastres no golfo, baseado em eventos reais de vazamentos de óleo na plataforma de per-furação marítima no Golfo do México; e podemos citar a belíssima trilogia de filmes brasileiros que exploram os aterros de lixo das grandes cida-des:  Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado; Boca de lixo (1992), de Eduardo Coutinho; e Estami-ra (2004), de Marcos Prado (Wolff, 2007); seriados de televisão sobre desastres ambientais e devastação da natureza, além de documentários jornalísticos e científicos sobre poluição pelo plástico descartado, derramamentos de petróleo e produtos químicos, contaminações por lixo tóxico e outros, em que são embutidos chamados para a ação (ou inação, como diz a autora). Enfim, explicita-se e reflete-se sobre como o lixo é “mediado” e como as narrativas midiáticas DEL VECCHIO-LIMA, M. A cultura do consumo e o lixo como produto criativo832conectam a cultura do consumo à questão da sus-tentabilidade socioambiental, que busca minimizar e equilibrar as relações e conflitos natureza-socie-dade.A exploração bem elaborada desses estudos de caso sobre a representação midiática do lixo traz dinamicidade à narrativa, sem deixar de ofe-recer reflexões argumentativas, como estofo para as informações, dados e exemplos, que percorrem os cinco capítulos do livro. A autora acentua que os casos estudados conduzem a questões existen-ciais profundas sobre como a subjetividade do ser humano contemporâneo é cada vez mais definida pelo consumo/desperdício e como as esferas públi-cas estão formatadas pelos resíduos e seu descarte. Assim, o exercício de imaginar um outro mundo é proposto pela autora: um mundo de consumo sem desperdício, com uma sociedade que valorize mais a ecologia e que, do ponto de vista moral, para pre-encher desejos e necessidades (materiais, psíquicas e existenciais) lutasse contra, ou abandonasse, a exploração do trabalho, a tortura dos animais não--humanos e a poluição dos mares. Nesse sentido, a autora adota uma postura coerente, mas polêmica, ao criticar os atuais modelos de consumo ético e do ativismo anti-consumista, que tendem a eleger o indivíduo como locus de mudança. Iqani não crê apenas nas mudanças individu-ais, mesmo que as pessoas que se propõem a tanto estejam engajadas em movimentos coletivos. Sua visão vai além e apresenta um radicalismo neces-sário ao considerar importante buscar soluções para construir uma cultura que mude as estruturas do poder permanentemente, o que parece ser difícil de conceber neste momento em um sistema políti-co e econômico baseado na exploração não só da natureza, mas na escravidão de homens e mulheres controlados por uma elite que se adonou de tec-nologias e que manipula os mercados financeiros.Ao final desta breve resenha é importante lembrar que, assim como Néstor García Canclini (2008), vários autores afirmam ser o consumo uma forma de exercício de cidadania, mas eles também reconhecem que no enquadramento ampliado dos efeitos da globalização, as práticas de consumo aceleram ainda mais as desigualdades sociais e as injustiças socioambientais. Na esteira do foco de Iqani, o mercado de consumo assentado em “alicerces de uma cultura do desperdício” (Santos, 2005, p.103), “não é universalizante, nem homoge-neizante; é [antes] uma fantástica fábrica de riqueza e miséria” como já afirmou Deleuze (1992, p. 213 in Santos, 2005, p. 103).Ao desenvolver a questão da politização do consumo em um contexto de cultura global, Mehita Iqani avança para um foco de reflexões em que “o lixo intervém não apenas em nossos espaços físicos e experiências, mas também no âmbito de nossas vidas mediadas e espaços representacionais” (p. 3). Ao término da leitura ressoa a pergunta de Iquani – “seria possível, um dia, vivermos em uma cultura de consumo sem desperdício?” – lembramos que, anteriormente, Lipovetsky (2007) já havia feito pergunta similar: “Quem poderá dizer quanto tempo será necessário para que uma consciência de outro tipo se levante, para que nasçam novos horizontes, novas maneiras de avaliar o avanço consumista?” (p. 368). Além disso, ele lembra que essa hora não chegou, mas que esse momento, fruto de uma inven-ção histórica datada, com certeza um dia chegará. Se a sociedade humana verá este futuro não se sabe, mas, por ora as narrativas midiáticas, como formas dominantes de consumo cultural moderno, nos contam e estetizam narrativas passadas, pre-Desenvolv. Meio Ambiente, v. 60, p.829-833, jul./dez. 2022. 833sentes e futuras sobre o lixo e o desperdício deste pequeno planeta em dado momento da história so-cial humana. Nas palavras finais do livro de Mehita Iqani, ela novamente retoma a questão “se e como a cultura do consumo seria capaz de evoluir para a definição de um novo tipo de liberdade” (p.174) – aquela que faria com que os indivíduos encon-trassem prazer e significado na cultura material, enquanto também minimizassem drasticamente a devastação determinada pelos seus artefatos. Seria essa uma questão utópica? Caso seja, é evidente que esta utopia é obrigatória para se contrapor ao pessimismo de um mundo já culturalmente marcado pelo desperdício que segue cego e célere para seus limites.Referências  Canclini, N.G. Consumidores e cidadãos: conflitos mul-ticulturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 7 ed., 2008.Lipovetsky, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.Santos, L.L. dos. A comunicação subjacente à cultura do desperdício:  o desenvolvimento sustentável como linha de fratura na produção capitalista. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia., 26,102-110, 2005. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revista-famecos/article/view/3308Veiga, J. E. da. O antropoceno e a ciência no sistema Terra. São Paulo: Ed. 34, 2019.Wolff, J. H. O cinema no lixo: uma trilogia dos restos da cidade. Revista Crítica Cultural, 2 (2), 34-37, 2007. Dis-ponível em: https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/Critica_Cultural/article/view/109

A cultura do consumo e o lixo como produto criativo

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The culture of consumption and waste as a creative product

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